A MINHA OPINIÃO

Série de artigos publicados no jornal Público e no Diário As Beiras, maioritariamente a versarem sobre a educação.

A Casconha está sem escola

Paulo Simões Lopes

A constatação provém dos pais da EB1 de Casconha. A escola tem uma equipa de profissionais dedicados, um projeto educativo consistente e cerca de 90 alunos divididos pelos 4 anos do 1º ciclo do ensino básico. Porém, não tem uma escola! Tem ferramentas de ensino diversificadas, um clima ordenado e sucesso educativo. Mas não tem uma escola! Tem filhos de residentes em Cernache e de famílias empenhadas oriundas de Condeixa, Penela, Soure e Montemor-o-Velho. Só não tem uma escola! […]

artigo completo

A constatação provém dos pais da EB1 de Casconha. A escola tem uma equipa de profissionais dedicados, um projeto educativo consistente e cerca de 90 alunos divididos pelos 4 anos do 1º ciclo do ensino básico. Porém, não tem uma escola! Tem ferramentas de ensino diversificadas, um clima ordenado e sucesso educativo. Mas não tem uma escola! Tem filhos de residentes em Cernache e de famílias empenhadas oriundas de Condeixa, Penela, Soure e Montemor-o-Velho. Só não tem uma escola!

Este artigo deveria ser sobre o encerramento do CAIC. Seria uma reedição, uma insistência do que previ há quase uma década, com o meu amigo João Asseiro. Antevimos o atual estado caciquista e fabiano, mas esta não é hora para insistir nas vantagens do ensino público contratualizado.

O problema de Casconha já tinha sido sinalizado na ‘Carta Educativa Municipal 2008-2011’. O relatório de avaliação externa realizado em 2010 pela IGE só confirmou a urgência da intervenção (“por falta de espaço, duas turmas têm aulas em blocos de aula provisórios sem condições adequadas para o trabalho lectivo”). O diagnóstico estava traçado há mais de uma década. Contudo, o atual executivo camarário encontrou uma “solução milagrosa” para os alunos de Casconha: arrendar salas de aula ao CAIC. Um paradoxo, considerando que foi o atual governo a determinar o fim do financiamento desta escola privada e do seu excelente serviço público, com o argumento de que, ao lado desta, haveriam escolas públicas igualmente excelentes e vazias! O certo é que, com a falência do modelo de gestão da escola privada, a autarquia arrendou ao CAIC salas devolutas para uso da Escola pública, que não tinha infraestrutura. Dá para acreditar? Aos olhos de quem não quer ver, uma gigantesca fraude intelectual, a servir a agenda política e corporativa. Uma decisão rocambolesca, tanto por evidenciar uma surpreendente falta de memória, como por representar a atual higiene partidária: “A fool with a tool is still a fool”. À margem de guerras ideológicas, as duas comunidades escolares adaptaram-se e provou-se, mais uma vez, a contribuição de fatores preponderantes, além do espaço físico, para que os alunos adquiram “o estatuto de pessoa humana plenamente responsável”.

Entretanto, como os nossos políticos tardaram em implementar o que foram rápidos a diagnosticar, só em dezembro de 2018, 10 anos após a identificação do problema, o executivo camarário aprovou o anteprojeto das especialidades para a “Ampliação e Requalificação da escola da Casconha”. Portanto, a Casconha volta a não ter escola. Merecia melhor sorte! Numa breve pesquisa, encontram-se referências ao trabalho da escola nos resultados obtidos no “Canguru Matemático” ou no recente prémio atribuído pelo Ministério da Educação aos alunos de Casconha, uma das três escolas premiadas no concurso nacional “Conta-nos uma história”, cujo objetivo é incentivar os “Estabelecimentos” a desenvolverem projetos que coloquem os alunos em situações educativas desafiantes, recorrendo à utilização das Tecnologias de Informação e Comunicação. Está no site do Ministério, mesmo sem as paredes públicas do tal “Estabelecimento”: os “Casconhitos” arrebataram o prémio nacional.

Desejamos professores magistrais, que participem com os nossos filhos num trajeto comum de aprendizagem, preparando-os para um mundo que ainda não existe, exigimos-lhes uma formação e adequação à convergência das tecnologias digitais, físicas e biológicas, pedimos que façam isto tudo sem saírem dos quatro pilares da educação: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser. E, para surpresa dos atores políticos, algumas comunidades educativas ajudadas por excelentes professores, tanto fazem isto numa escola emprestada, como nos contentores despojados que, eventualmente, voltarão a servir de escola à Casconha.

Tudo em sintonia! Segundo Shofia, “Num país sem flores onde o mar não é mar / E enigma são os navios / Eu não entendo o sentido das velas”.

Diário As Beiras, 20190619

Se me perseguiram a mim, também vos hão-de perseguir a vós

Paulo Simões Lopes

“Se o Tibre chega às muralhas, se o Nilo não se eleva até os campos, se o céu não provê chuva, se há terremotos, se há fome ou peste, imediatamente se grita, ‘os cristãos ao leão’”. Ao contrário dos politeístas, os cristãos acreditam num só Deus, nunca poderiam reconhecer os Césares como Deuses. Também por esta via, ganharam Roma como inimiga e a ira de quem vivia da arte pagã. Cristão passa a ser o bode expiatório para todo o tipo de crises. Quando o negócio não corria de feição ou ‘por dá cá aquela palha’, o cristão era atirado ao leão. […]

artigo completo

“Se o Tibre chega às muralhas, se o Nilo não se eleva até os campos, se o céu não provê chuva, se há terremotos, se há fome ou peste, imediatamente se grita, ‘os cristãos ao leão’”. Ao contrário dos politeístas, os cristãos acreditam num só Deus, nunca poderiam reconhecer os Césares como Deuses. Também por esta via, ganharam Roma como inimiga e a ira de quem vivia da arte pagã. Cristão passa a ser o bode expiatório para todo o tipo de crises. Quando o negócio não corria de feição ou ‘por dá cá aquela palha’, o cristão era atirado ao leão.

O pretexto para a perseguição pelos regimes romanos antigos mantém-se nos regimes totalitários modernos, trocando as feras por armas mais sanguinárias, os ataques repetem-se. Na nação que adotou o slogan de uma revolução, ´liberté, égalité, fraternité (ou la mort)´ são vandalizadas em média, 3 igrejas por dia e, em 2018, foram assassinados no mundo 4.305 cristãos. O que move os instigadores de tais atos? Na maioria das vezes, a ânsia do controlo político absoluto, a aspiração do domínio religioso, a iliteracia religiosa ou o puro alienismo dos motivos inúteis: Páscoa de 2015, 147 estudantes assassinados na Universidade Católica de Garissa (Quénia); Páscoa de 2016, 75 mortos num atentado suicida num parque frequentado por cristãos, em Lahore (Paquistão); Páscoa de 2017, 45 cristãos mortos num ataque a duas igrejas em Tanta e Alexandria (Egito); … Páscoa de 2019, 253 mortos e 500 feridos em vários atentados no Sri Lanka (antigo Ceilão), contra uma minoria maioritariamente descendente da presença do império português nos séc. XVI e XVII. Se este pormenor passou despercebido, é recordar a sua importância na estrofe que abre a nossa maior obra épica (ainda com o nome romano do fim do mundo, a Taprobana, antes de batizado de Ceilão pelos portugueses).

As armas e os barões assinalados,
Que da ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca de antes navegados,
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados,
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;

O que sobressai da comparação entre este tipo de crimes horrendos? Após o massacre de 50 muçulmanos na Nova Zelândia, ouviram-se estadistas alinhados (e bem!) a condenarem o ‘ataque islamofóbico’; no massacre de 235 cristãos no Sri Lanka, mesmo com declarações explicitas e não censuradas no Youtube de um dos bombistas (“quem discordar dos muçulmanos deve ser morto”), não se ouviu falar em cristofobia, antes um ‘politicamente correto’ condenar do ‘extremismo religioso’. Um parêntese, para deixar bem claro que o termo ‘árabe’ não tem caráter religioso mas cultural; um árabe não tem necessariamente de ser muçulmano e um islâmico não é o mesmo que um jihadista.

Mais que a dor, entristeceu-me o silêncio que esconde a vergonha de ser cristão. “Ninguém se afasta de Deus para ser melhor!” (Pe. M. Paiva). Será o ter valores morais ou frequentar a igreja que faz o bom cristão? Não é por irem a uma oficina que saem de lá transformados num carro! Ser Cristão é mais, muito mais do que tornar a viver. É acreditar, é ser um seguidor sempre renascido na ação de criar e amar. Esta é a questão nuclear, que deve alimentar o íntimo do crente: Jesus presente. Ontem, hoje e sempre.

Estamos a perder a nossa essência identitária, os direitos universais que protegem a integridade do ser humano, o legado civilizacional que demorou séculos a desenvolver e a cristalizar: a família como berço da vida, a educação, o respeito, a solidariedade, a generosidade, valores, tolerância, justiça, equidade, multiculturalidade, urbanidade, humanidade, paz…. “liberté, égalité, fraternité”. Nada de novo. “Se me perseguiram a mim, também vos hão-de perseguir a vós” (Jo. 15, 20).

Diário As Beiras, 20190510

Ginástica em Coimbra!

Paulo Simões Lopes

Pensar “fora da caixa” é não o que o município pode fazer pelos munícipes, mas o que o os munícipes podem fazer pelo município! Quando Pedro Roxa, aluno de Direito na Universidade de Coimbra, em 1852, fundou e estabeleceu a Sociedade Gymnástica em casa do seu pai, no Largo de Sansão (hoje Praça 8 de Maio), estava longe de prever que a discussão sobre o futuro gímnico em Coimbra estivesse a ser (re)iniciada no início do século XXI, no preciso local onde outrora existiu um chafariz encimado pelo herói bíblico Sansão. Cá estamos de novo, na velha discussão da refundação gímnica. Percebe-se a demora no consenso: tal como na ginástica, a contenda requer força, equilíbrio, agilidade e, já agora, uma enorme carga de bom senso. […]

artigo completo

Pensar “fora da caixa” é não o que o município pode fazer pelos munícipes, mas o que o os munícipes podem fazer pelo município! Quando Pedro Roxa, aluno de Direito na Universidade de Coimbra, em 1852, fundou e estabeleceu a Sociedade Gymnástica em casa do seu pai, no Largo de Sansão (hoje Praça 8 de Maio), estava longe de prever que a discussão sobre o futuro gímnico em Coimbra estivesse a ser (re)iniciada no início do século XXI, no preciso local onde outrora existiu um chafariz encimado pelo herói bíblico Sansão. Cá estamos de novo, na velha discussão da refundação gímnica. Percebe-se a demora no consenso: tal como na ginástica, a contenda requer força, equilíbrio, agilidade e, já agora, uma enorme carga de bom senso.

A par do desenvolvimento de corpos e mentes sãs, numa visão do ideal de beleza humana, sabemos hoje que a ginástica contribui para gerar equilíbrio entre a aptidão física e intelectual, contribuindo para preservar e aumentar a elasticidade das capacidades cerebrais. Ajuda-nos no desenvolvimento cognitivo, na gestão saudável das emoções e na concentração das competências. Especialmente, para estudantes, é “the best buy”. Assim, não será de estranhar que existam, numa cidade educadora, 6 clubes com formação desportiva na ginástica, elevando-a à categoria de modalidade mais representativa, logo a seguir ao futebol. Acrobática, aeróbica, artística, rítmica, de trampolins ou de grupo, a Associação de Ginástica do Centro (AGDC) agrega mais de 3.000 filiados e há muito que aspira por melhores condições para a prática desportiva.

O problema não passou despercebido às forças partidárias da Cidade. O executivo camarário tentou resolver este problema a “custo zero” para os munícipes, lançando um concurso público para a concessão de um terreno municipal a uma entidade privada que, em contrapartida, construiria e exploraria, por 40 anos, um “Complexo Desportivo Integrado e Centro Olímpico de Ginástica”. Mas, como acontece quando esperamos que o interesse privado beneficie o interesse público, neste concurso não houve exceção à regra. Perante um “caderno de encargos muito vago”, a única proposta a concurso não correspondeu à generalidade das expetativas. O complexo é multidesportivo, mas não é olímpico. É para a prática de múltiplas modalidades olímpicas, mas desfocado do essencial: o pretexto para a abertura do concurso. O “Centro de Ginástica” foi relegado para parente pobre do projeto, com apenas 40% da área total de implantação (1.578m2). Mais ainda, traz vantagens para o investidor do que contrapartidas para a cidade e “está longe de ser o que a modalidade, os praticantes e o concelho reclamam e merecem”.

Perante este imbróglio, a oposição apresentou um projeto alternativo, para um terreno municipal contíguo ao anterior, com uma área bruta de construção de quase 7.000m2 e conceção técnica e funcional da AGDC. Batizado de Arena Municipal de Ginástica e da responsabilidade da autarquia, tem um custo estimado de 6M€. Defendem que o investimento cabe no orçamento plurianual da autarquia e com vantagem sobre o projeto privado, uma vez que permite a polivalência funcional de todas as áreas de Ginástica e a sua utilização simultânea por vários clubes/escalões formativos, resultando daqui o aumento e a qualidade da prática desportiva. Enfim, um palco para provas (inter)nacionais e uma referência nacional, que também daria uma dimensão que falta à cidade.

Ora, o que diz o tal juízo que se procura? A fonte de Sansão, gravemente danificada em 1820, ficou como estorvo na via pública até 1876 e serviu, através dos tempos, como imerecida consequência do futuro da cidade. Tal como aconteceu com o corte dos cabelos de Sansão, as forças políticas da cidade esvaneceram-se num destino que o perpassar do tempo se encarregou de entranhar sob a nossa pele, não deixando respirar, quanto mais fazer florescer um projeto de consenso. Talvez a obra consensual esteja entre as duas propostas e, em uníssono, 170 anos depois de Pedro Roxa, consigamos projetar a ginástica para um lugar de destaque, finalmente fora da sina de Sansão.

Diário As Beiras, 20190412

Lisboa é um buraco negro.

Paulo Simões Lopes

Seabra Santos, Margarina Mano, Carlos Fiolhais ou Helena Freitas, chamo poucos dos muitos que alertaram para uma “cidade em contínua decadência”. “Falta-nos capacidade de atrair outros, e de os integrar, e, com isso, melhorar a palete de cores, de cheiros, de sabores das comunidades que fazem a cidade”. Mas, tem ainda mais razão Gonçalo Quadros, quando diz que somos um país “fortemente assimétrico […] 

artigo completo

Seabra Santos, Margarina Mano, Carlos Fiolhais ou Helena Freitas, chamo poucos dos muitos que alertaram para uma “cidade em contínua decadência”. “Falta-nos capacidade de atrair outros, e de os integrar, e, com isso, melhorar a palete de cores, de cheiros, de sabores das comunidades que fazem a cidade”. Mas, tem ainda mais razão Gonçalo Quadros, quando diz que somos um país “fortemente assimétrico […] vergonhosamente centrado em Lisboa. Lisboa é um buraco negro. Tem atraído tudo e mais alguma coisa, o que tem ajudado a que uma espécie de deserto prospere numa parte importante do país”.

Sei, sabemos todos, que é imperioso o país concretizar políticas públicas justas no combate à assimetria territorial. Sabemos? Será claro para todos que os territórios se desenvolvem com os recursos locais e com os que para lá se enviam?

O ensino superior público dispõe de uma rede de 192 residências que preenchem 13% das necessidades dos estudantes deslocados. Na expetativa de democratizar o ensino, o governo anunciou em maio de 2018, com pompa e circunstância, o Plano Nacional de Alojamento para o Ensino Superior (PNAES). A pretensão era clara e visava disponibilizar fundos para a intervenção e transformação de edifícios do estado em residências de estudantes. Trazia a ousadia de querer duplicar a oferta em 10 anos, i.é., aumentar em 15.400 o número de camas.

 Menos de um ano depois, foi publicado o DL 30/2019, que prevê a criação de três modalidades de alojamento, sendo uma delas a da reabilitação de imóveis através do Fundo Nacional de Reabilitação do Edificado. Numa primeira fase, entre novas construções, reabilitações, ampliações e reconversões, foram identificados 122 imóveis. Pousadas da juventude, mosteiros, palácios, conventos, escolas, prédios, vivendas, apartamentos e, até, a antiga Fábrica de Pólvora de Barcarena. Na verdade, o plano inicial de 2018 foi reduzido para 11.500 camas. Poder-se-ia exigir manter um plano mais audacioso, mas, creio, é a contribuição possível do nosso estado social. O título deste artigo não recai, portanto, no PNAES, mas no facto da maioria destas camas se situarem na área Metropolitana de Lisboa (precisamente 6.817 camas). Vergonhosamente, 60% do total do Plano nacional de investimento é para ser implementado na Capital!

 Quando a centralização é descarada, a idiotia e o roubo custam mais. A área metropolitana de Lisboa tem cerca de 2.550 camas e Coimbra 1.800. Por outro lado, a percentagem de estudantes deslocados em Coimbra é o dobro da verificada em Lisboa. A manterem-se constantes as restantes variáveis, e concretizando-se o Plano, daqui a 10 anos o rácio cama por deslocado na capital passará dos atuais 9,2% para 35%, quando em Coimbra se ficará pelos 12%. É a receita de sempre, com a velha solução: colocar “os contribuintes de todo o país a financiarem os privilégios da capital”, mesmo que em contradição com a recente medida de retirar 5% do numerus clausus às duas áreas metropolitanas redistribui-los pelo país.

 São estes privilégios, legislatura após legislatura, denunciados por Vital Moreira, e o deslumbramento pacóvio dos que migram da província para a capital que não muda o que já vem das Prosas Bárbaras de Eça: “Lisboa nem cria, nem inicia; vai. / As ondas que solucem, as florestas que se lamentem, ela tem o riso radioso e sereno”. Continua coveira de almas, mas agora também semeia a erva que cobre as ruínas do país! Como um buraco negro, possui uma força devastadora que suga tudo e todos. Nada, nem os sonhos, nem mesmo a côdea lhe escapa.

Diário As Beiras, 20190312

Quem irá pagar as propinas?

Paulo Simões Lopes

O argumento recorrente para os defensores da eliminação da “taxa de frequência” (propina) no ensino superior reside na alínea e) do artigo 74ª da Constituição: “Estabelecer progressivamente a gratuitidade de todos os graus de ensino”. Noutra corrente, igualmente por preceitos constitucionais e com o fundamento de que o Estado demora a construir uma sociedade em que os direitos sociais são universais e não de determinadas classes, os defensores da propina sustenta-se na alínea f), n.º 2 do artigo 67.º: “Regular os impostos e os benefícios sociais, de harmonia com os encargos familiares”. Para estes últimos, como este ensino não é universal nem obrigatório, do mesmo modo que entendem que parte dos seus custos devem ser suportados pelos beneficiários, também defendem “ninguém deve ficar fora do Ensino Superior por razões financeiras e económicas” (Marçal Grilo). […]

artigo completo

O argumento recorrente para os defensores da eliminação da “taxa de frequência” (propina) no ensino superior reside na alínea e) do artigo 74ª da Constituição: “Estabelecer progressivamente a gratuitidade de todos os graus de ensino”. Noutra corrente, igualmente por preceitos constitucionais e com o fundamento de que o Estado demora a construir uma sociedade em que os direitos sociais são universais e não de determinadas classes, os defensores da propina sustenta-se na alínea f), n.º 2 do artigo 67.º: “Regular os impostos e os benefícios sociais, de harmonia com os encargos familiares”. Para estes últimos, como este ensino não é universal nem obrigatório, do mesmo modo que entendem que parte dos seus custos devem ser suportados pelos beneficiários, também defendem “ninguém deve ficar fora do Ensino Superior por razões financeiras e económicas” (Marçal Grilo).

A questão não é “simples” nem de doutrina. Se o fosse, bastava a concordância dos constitucionalistas. Vital Moreira esvaziou a razoabilidade da medida (“trata-se de uma supina iniquidade fazer pagar o ensino superior por quem o não frequenta – ou seja, as pessoas de menores rendimentos – ou, pior ainda, pelos estudantes do ensino superior privado [65.000], que assim pagam duas vezes”). Jorge Miranda simplificou-a (“o ensino superior, visto que não é universal, tem uma gratuitidade a ser conseguida progressivamente e moldável em razão das condições económicas e sociais: ele deve ser gratuito, quando as condições dos alunos o reclamem; não tem de ser gratuito, quando as condições dos alunos o dispensem”). Ou seja, num Estado Social em permanente escassez moderada, a Constituição deve ser cumprida na exata proporção dos recursos disponíveis – princípio da reserva do financeiramente possível – prevalecendo o princípio da equidade e da solidariedade social.

A contenda deve basear-se, portanto, no subfinanciamento do setor, atendendo a que: A DGEEC mostrou que os problemas de natureza económica são o principal fator para os 30% de abandono do ensino superior. O CESTES 2 indicou que 23% da despesa destes jovens é com alojamento e que cada estudante gasta, em média, por ano, cerca de 5.209€. Para aceder a uma bolsa ASE, o rendimento familiar per capita bruto anual não pode ultrapassar os 7.926€. Neste cenário, a universalização do ensino superior passa por atenuar a despesa com o alojamento e pelo reforço da Ação Social Escolar!

Que fez, então, o governo? Publicou o pensamento político no site oficial (“Manuel Heitor defende fim das propinas no ensino superior”), baixou a propina em 212€ e determinou que todos terão de financiar um ensino não obrigatório, frequentado por 35% de estudantes oriundos de meios com um nível sócio-educacional superior, que só representam 18% da população. No oposto temos 7% da população sem qualquer nível de escolaridade que só coloca 1% dos seus filhos neste ensino. O Ministro Manuel Heitor, com uma voz para a consciência e outra para o arrependimento, veio dizer agora que nunca falou em propinas e, surpreendentemente, enfatizou: “acabar com as propinas agora seria altamente populista”. Dito preto no branco, baixou a propina com o objetivo de permitir que utilizem as máquinas partidárias para forjar paixões e exaltações coletivas aos que só possuem horizonte eleitoral.

Dando o benefício da dúvida aos que acreditam que o futuro vai ser diferente do passado, quem vai, no final, pagar os 212€, sabendo que o estado nos últimos três anos, violando o contrato de legislatura assinado com as instituições, nunca lhes transferiu um cêntimo de compensação pelo congelamento das propinas?

Diário As Beiras, 20190212

A “Adoração dos Magos”

Paulo Simões Lopes

A “Adoração dos Magos” de Domingos Sequeira pode não ter a glória das “Magis adoratur” de Rubens, Rembrandt, Murillo, Botticelli, Diego Velázquez ou da Vinci. Todavia, questiono-me como concentra tanto de transcendência e de ambiente festivo? Como não sei nada de pintura (admito a ignorância), ouso classificar esta “fonte de luz iminente” como a que melhor evidencia a relação entre a luz e a natividade, o “sol de justiça”, a “luz do mundo” ou a “explosão de luz”, descoberta na “hipótese do átomo primordial” mas surpreendentemente anunciada em Génesis (Deus Disse: “faça-se a luz.” E a luz foi feita). Numa prodigiosa capacidade de síntese e tensão dinâmica tranquila, e como diria o tio Carlos Pedro, transmite a visão de que o natural é suficientemente prodigioso para conceder o que quer que seja ao sobrenatural! […]

artigo completo

A “Adoração dos Magos” de Domingos Sequeira pode não ter a glória das “Magis adoratur” de Rubens, Rembrandt, Murillo, Botticelli, Diego Velázquez ou da Vinci. Todavia, questiono-me como concentra tanto de transcendência e de ambiente festivo? Como não sei nada de pintura (admito a ignorância), ouso classificar esta “fonte de luz iminente” como a que melhor evidencia a relação entre a luz e a natividade, o “sol de justiça”, a “luz do mundo” ou a “explosão de luz”, descoberta na “hipótese do átomo primordial” mas surpreendentemente anunciada em Génesis (Deus Disse: “faça-se a luz.” E a luz foi feita). Numa prodigiosa capacidade de síntese e tensão dinâmica tranquila, e como diria o tio Carlos Pedro, transmite a visão de que o natural é suficientemente prodigioso para conceder o que quer que seja ao sobrenatural!

 Como num caleidoscópio, ora vejo uma Luz estruturada de forma visionária, a “Génesis Cósmica”, esse fluído que me conduz ao mais ínfimo dos pormenores de um desenho onde tudo parece estar com um só propósito, ora inquiro sobre a força fenomenal que há cerca de 13,8 mil milhões de anos terá descomprimido o ´pontinho´ microscópico onde coube o Universo. Sequeira representa nesta tela várias especulações perfeitas “para as quais não há modelos fornecidos pela natureza real” e é a mística dessa Luz que me atrai ao quadro, numa espécie da “teoria de [quase] tudo”, que a ciência ainda não encontrou.

 De todas as visões, a mais legítima é o anúncio da natividade e o ponto central da religião cristã: o Amor. A receita é extraordinariamente simples (“amarás o teu próximo como a ti mesmo”). Infelizmente, o mais básico é excecionalmente difícil de realizar. Porém, o que seria de uma humanidade, mandatada para a mediocridade, sem o peso da tremenda responsabilidade do livre arbítrio que Ele nos concedeu, na opção entre o bem e o mal? É neste prisma que reencontro os homens no melhor de si próprios: a vontade de estar com os outros, o ser esperado, o amor, a paixão e o nascimento.

 Se não conquistei a sua atenção para esta imensa Luz, deixo um último desafio: consegue admirar o cortejo dos Reis eruditos na apresentação do Menino? Claro que sim! Agora repare o quão prodigioso é o natural… Não, não é o cortejo! É o facto de termos evoluído do “átomo primordial”, numa sequência única, até à tomada da consciência. Acha isso pouco espantoso? Há mais ou menos 3,8 mil milhões de anos que os nossos progenitores têm sobrevivido prodigiosamente para, em momentos únicos, umas boas centenas de milhões de vezes, terem trocado material genético criando uma combinação de DNA, a molécula mais espantosa da terra, do qual resultou o ser irrepetível que é hoje. Surpreende-o esta conjugação das teorias de Darwin e de Lamaitre? É a melhor explicação que temos para justificar o acaso de estar aqui ao invés de encastrado como uma lapa no fundo do oceano.

 Esta é uma ideia de um caminho entrelaçado de religião e de ciência, uma que anuncia quem criou o Universo e outra de como Ele o criou. Não que traga algo de novo ao que Galileu disse há 400 anos (“a intenção do Espírito Santo é ensinar-nos como ir para o céu e não como o céu se move”). Em qualquer caso, resta o tal livre arbítrio: tanto pode ver no quadro o motivo para celebrar a vitória da luz (Sol Invictus) sobre a noite mais longa do ano (solstício de inverno), admirar a passagem de algo que ainda não entendemos (Deus) para o que quase percebemos (ciência), ou cuidar da Luz, protagonista e não acessória que anuncia o (re)nascimento da nossa esperança.

Diário As Beiras, 20181221

Estórias de verão: a “guerra da água”

Paulo Simões Lopes

A imagem de São Sebastião, que encima um dos Arcos do Jardim, estava originalmente cravada com setas. Certo dia, um grupo de estudantes, farto de ver dor no mártir, arrancou-as e deixou no seu lugar um letreiro: “já basta de padecer”. O que me faz recuar aos séculos medievais da Lusa-Atenas e à dependência da água: insuficiente na Alta (a razão de ser do aqueduto); equilibrada no Jardim da Manga (a ‘fons vitae’ que nasce do centro do Universo para os quatro rios do Paraíso); descontrolada no Mondego. […]

artigo completo

 

A imagem de São Sebastião, que encima um dos Arcos do Jardim, estava originalmente cravada com setas. Certo dia, um grupo de estudantes, farto de ver dor no mártir, arrancou-as e deixou no seu lugar um letreiro: “já basta de padecer”. O que me faz recuar aos séculos medievais da Lusa-Atenas e à dependência da água: insuficiente na Alta (a razão de ser do aqueduto); equilibrada no Jardim da Manga (a ‘fons vitae’ que nasce do centro do Universo para os quatro rios do Paraíso); descontrolada no Mondego.

Por patrocínio das filhas de D. Sancho, faz-se a fundação do mosteiro de São Domingos, perto da rua Direita, antiga rua da Figueira-Velha que decalca a via romana vinda da portagem e ia direta ao porto do Arnado, num lugar onde “avia muita frescura de pumares que chamavão o Figueiral”. Resistiu aos implacáveis humores e insultos do Bazófias até que, no século XVI, os dominicanos mais pareciam náufragos do que monges. No inverno as águas do rio atropelavam-se ganhando a altura do mosteiro e o Verão punha a descoberto os lodos pútridos de onde emergiam vapores nocivos à saúde. Assoreados, transferiram-se em 1566 para um dos ‘quarteirões’ da rua da Sofia. Durante séculos a parte cimeira da torre do antigo mosteiro, como uma lápide, assinalou o lugar de ‘Chão da Torre’ (ainda visível na planta da cidade de 1845, do goês Isidoro Batista). Perdeu-se no tempo até que, em 2008, a construção de um parque de estacionamento subterrâneo pôs a descoberto os vestígios arqueológicos do antigo local de formação da elite dominicana em Portugal. Ali ficou, parcialmente sob a Av. Fernão Magalhães, oito metros abaixo do nível freático do rio Mondego.

Não quiseram dar-lhe a sorte do Convento de Santa-Clara, nem souberam dignificar a nova igreja na rua da Sofia, que acabou descaracterizada como Centro Comercial e desclassificada de Monumento Nacional. Sobrou a ‘Capela do Tesoureiro’, assinada por João de Ruão, que, em boa hora, foi acompanhar a sua fantástica “Deposição de Cristo no túmulo” no Museu Nacional Machado de Castro. Pelo caminho perdeu-se história e património, como o famoso sino do antigo mosteiro, o da descrição do frei Luiz de Sousa, que, por erro de cálculo na sua fundição, abalava consigo a torre que o suportava “de tal modo que na base fazia uma abertura que podia receber o grosso de hum dedo polegar”. Aliás, a sua grandeza consta da passagem por Coimbra, a caminho de Santiago, do infante D. Luiz (pai do prior do Crato). Ao subir à torre e ao ouvir dobrar o sino, apanhou tal susto que cortou com a sua espada a corda que movia o sino.
Enquanto os dominicanos fugiam de Lameira, D. Sebastião mandava (re)construir na Alta o aqueduto e a recolha da água na encosta de Celas, maioritariamente na fonte de el-Rei e da Rainha (Colégio de Tomar, hoje penitenciária). Correndo com a gravidade, depois dos arcos, a água seguia subterraneamente até ao Fontanário dos Bicos (‘fons fori’), então no Largo da Feira dos Estudantes (largo da Sé-Nova). A obra real, sabotada à noite pelos frades de Santa Cruz, durou mais do que devia. Com uma opinião elevada de si próprios, preferiam que os “sarrazem per meeyo” a perderem as nascentes. Ora, como dois monólogos não fazem um diálogo, instalou-se a ‘guerra da água’. No desenlace, os Crúzios ainda foram coagidos a partilhar a água do Chafariz da Ribela (acima do mosteiro), secam-lhes o fontanário da Manga (no coração do mosteiro) e arrasam-lhes o chafariz de São João (em frente ao mosteiro).

Nada de novo no motivo destas guerras, basta recuar 4.500 anos, à Mesopotâmia do rio Tigre e Eufrates, para encontrar a nossa tendência para a “guerra da água”. Estas estórias só equacionam a possibilidade de estarmos condenados a encontrar o equilíbrio, com engenho e com bom senso, na nossa relação primordial com a água.

 

Diário As Beiras, 20180905

Estórias de verão: Figueira da Foz  

Paulo Simões Lopes

Próximo do estuário, os sedimentos alagaram o rio a sul e aproximaram-no a norte. No meio, a ilha da Murraceira obriga o Mondego a dividir-se em dois, voltando a unir-se mais à frente, à entrada da cidade da Figueira da Foz. Perto da ilha, no antigo cais de Salmanha, trocava-se, à sombra da Figueira, a lenha e carqueja por sal e peixe. Terá surgido daqui o nome da cidade, apesar da explicação académica para a origem: viria antes de ‘fagaria’ (abertura) + ‘fauces’ (embocadura). Seja como for, percorridos 258km, é aqui que o Mondeguinho se dilui no Atlântico. […]

artigo completo

Próximo do estuário, os sedimentos alagaram o rio a sul e aproximaram-no a norte. No meio, a ilha da Murraceira obriga o Mondego a dividir-se em dois, voltando a unir-se mais à frente, à entrada da cidade da Figueira da Foz. Perto da ilha, no antigo cais de Salmanha, trocava-se, à sombra da Figueira, a lenha e carqueja por sal e peixe. Terá surgido daqui o nome da cidade, apesar da explicação académica para a origem: viria antes de ‘fagaria’ (abertura) + ‘fauces’ (embocadura). Seja como for, percorridos 258km, é aqui que o Mondeguinho se dilui no Atlântico.

O lugar é de ocupação antiga mas o que havia para explicar do passado, ou foi saqueado ou incendiado por piratas e corsários, nos séc XVI e XVII. Conquistado com a ajuda dos Cavaleiros de Santiago, em 1064, é doado por D. Afonso Henriques ao Mosteiro de Santa Cruz, que se encarregou de o povoar e de receber os direitos de passagem dos barcos que subiam o rio, talvez até à Ereira, nas imediações da ilhota da Santa Olaia, ou mesmo à beira de Coimbra tendo em conta que, nos últimos mil anos, os sedimentos elevaram o Rio cerca de 0,8 metros em cada século. Quando o Rei Fernando Magno de Leão conquistou e entregou o castelo ao Conde Sesnando, a foz do Mondego era defendida pelo ‘forte’ de Montemor-o-Velho. Se recuarmos outro milhar de anos, diante de Montemor avistar-se-ia ao longe, na direção do mar, uma ilha fraturada ao meio. A norte, Maiorca até à Serra da Boa Viagem. A sul, Verride até à Gesteira. No meio, a “garganta de Lares”, para onde converge o rio.

Com a descoberta da Figueira para veraneio, para evitar os salteadores e as grandes manadas de touros que pastavam no baixo mondego, as famílias levavam por via fluvial tudo o que não havia nas casas da Figueira. Ainda em pleno séc. XIX, as barcas serranas vindas da Foz do Dão e da Raiva, desciam o rio à vara até Montemor e continuavam com o auxílio da vela. O percurso tinha tanto de pitoresco como de perigoso: ora contemplavam as “enormes tulhas de melões e melancias, que os lavradores ali mandavam empilhar afim de os venderem às regateiras de Coimbra que lhes iam comprar os seus fornecimentos”, ora punham os melhores semblantes de pânico ao dobrarem o Penedo de Lares.

Chegados à Figueira, excluindo a agitação da ‘doca’, deparavam-se com um lugar de costas para o mar. Nem a construção do Bairro Novo aproximou a terra da areia. Pelo contrário, alimentado pelo crescimento do turismo burguês espanhol (“inaugurase el dia 15 de Julio y está abierto toda la temporada balnear”), entrincheirou-se em redor do jogo nos casinos ‘Espanhol’, ‘Europa’, ‘Mondego’, ‘Oceano’ ou no ‘Grande Casino Peninsular’, à época a maior sala de espetáculos do país. Nas ruas ouviam-se valsas e tangos que as paredes dos cafés não continham e, quando a cidade da Belle Époque faz as pazes com a praia, “era já Coimbra. Ou cheirava tanto a Coimbra que era como se fosse”. Ramalho Ortigão faz-lhe duas descrições perfeitas. Em ‘As Farpas’, fala da mais linda de todas as praias: “A paisagem é tão larga, tão descoberta e tão luminosa que impõe uma espécie de culto e de cerimonial. Os lindos sítios levam as mulheres a vestir-se bem”. Já em as ‘Praias de Portugal’, espelha o sentimento de quem entra na Figueira como se entra nos gerais da Universidade, mistura “os ares dogmáticos de uns […] com os ares patuscos de outros”, referindo-se a uma certa “atmosfera especial de pedantaria”, caracterizada pela “grave expressão enfática, guindada e oca dos doutores” e pelas “cabeleiras dos estudantes aparatosamente penteados” que, para além de Coimbra, só conheciam o ‘picadeiro’, onde se concentram todos os galantes e galhofentos.

E aqui estou, na mesma Figueira de outrora, diante deste ‘Mar Português’ que teimam em mandar para longe, como se fosse imperativo aluviar ainda mais esta ilha. Resta da infância o vento que leva agora novas memórias, mas perde-se neste incomensurável areal: “o vento não me diz nada / só o silêncio persiste”.

Diário As Beiras, 20180822

Estórias de verão: Guiomar, dama da cutilada  

Paulo Simões Lopes

Pedro Nunes (Petrus Nonius), matemático e cosmógrafo-mor no Reino, foi dos primeiros a interessar-se pela exatidão matemática em detrimento do escolaticismo mediévico. Do seu ilustre trabalho resultou também o enorme contributo para o desenvolvimento de uma Náutica científica. Foi criador de teorias náuticas aplicadas e experimentadas por outros, das quais resultaram inúmeros instrumentos e construções gráficas. A sua glória ficou perpetuada no Padrão dos Descobrimentos e consta que terá aconselhado D. Catarina a adiar por três dias a entrega do Governo da nação a D. Sebastião, pois os astros encontravam-se de mau agouro no dia em que o infante completava 14 anos (20 de janeiro de 1568). Contudo, garantiu que, caso a entrega ocorresse nesse dia, o Reinado seria “instável, cheio de inquietação ordinária e de muy pouca dura”. De facto, não se enganou, o “mayor mathematico de quantos a avido en nuestros tempos”. […]

artigo completo

Pedro Nunes (Petrus Nonius), matemático e cosmógrafo-mor no Reino, foi dos primeiros a interessar-se pela exatidão matemática em detrimento do escolaticismo mediévico. Do seu ilustre trabalho resultou também o enorme contributo para o desenvolvimento de uma Náutica científica. Foi criador de teorias náuticas aplicadas e experimentadas por outros, das quais resultaram inúmeros instrumentos e construções gráficas. A sua glória ficou perpetuada no Padrão dos Descobrimentos e consta que terá aconselhado D. Catarina a adiar por três dias a entrega do Governo da nação a D. Sebastião, pois os astros encontravam-se de mau agouro no dia em que o infante completava 14 anos (20 de janeiro de 1568). Contudo, garantiu que, caso a entrega ocorresse nesse dia, o Reinado seria “instável, cheio de inquietação ordinária e de muy pouca dura”. De facto, não se enganou, o “mayor mathematico de quantos a avido en nuestros tempos”.

Recolhido em Coimbra, ocupou a sua cátedra e revolucionou com a pedagogia noniana. Viveu na Calçada e foi por ali que a sua filha, Guiomar, se enamorou deHeitor de Sá, um vizinho nobre da Rua das Fangas, ao Arco de Almedina. A coisa corria de feição até que o diabo se intrometeu mais do que devia e o compromisso com a donzela foi descurado. Guiomar, cansada pela espera do sonho de ouro, foi queixar-se ao ex-reitor, o conde-bispo da Diocese de Coimbra, D. Manuel de Meneses, que logo tomou o assunto como seu. A estória situa-se entre 1573 e 1578, este último o ano da morte do bispo D. Manuel, em Alcácer-Quibir ao lado de D. Sebastião, e do lente Pedro Nunes, em Coimbra, sete dias após, faz esta semana 440 anos. Terá sido em janeiro de 1578, que o Bispo mandou chamar os‘noivos’ à igreja de S. João de Almedina (não a atual, do séc. XVII, adjacente ao antigo Paço Episcopal, hoje Museu Nacional de Machado de Castro, mas outra mais antiga, com a capela a nascente e a porta principal a poente, provavelmente anterior ao séc. XII, sobre a qual a atual foi fundada). Nessa altura o rapaz recusou a promessa de amores enquanto solta injúrias. Guiomar defendeu-se com as cartas de amor e o contrato de casamento lavrado com o pai e, após conselhos e ameaças do bispo ao rapaz, sentindo-se traída, fez uso de um “canivete próprio para lavores” com o qual cortou, da orelha até à boca, a face que a tinha achincalhado.

Protegida daqueles que eram pelo noivo, esteve em prisão benévola no Aljube até aceitar a proteção do convento de Santa-Clara, onde era abadessa a irmã do bispo. Para concretizar a fuga da prisão e a entrada no convento era preciso atravessar a ‘Ponte do O’, guardada pelos Sá e pelos amigos de Heitor. Sabedores dessa intenção e desejosos por vingança, montaram sentinela num dos seus 24 arcos de pedra. Guiomar passou a ponte ao pôr do sol do Domingo de Ramos, escondida numa canastra, coberta por velas e outras oferendas do Bispo para a Semana Santa. Não podia existir dia mais simbólico para marcar a passagem de Guiomar, o da Paixão, Morte e Ressurreição.

A ponte foi amassada com o suor de muitos e batizada com o sangue de outros, mas deste mal livrou-se Guiomar. Misturou as suas lágrimas de amor com as águas que só o Mondego sabe guardar até se diluir na Foz e fez os seus votos (“professa”), passando a ser inspiração dos poetas: “Senhora Dona Guiomar, / Que ada, / a d’el-rei, /Pois destes a cutilada”…“Foi mui grande o valor dela, / E pouca a vergonha dele, / Mas se ela ficou sem ele, / Ele não ficou sem ela.”

Diário As Beiras, 20180808

Estórias de verão: Cistercienses, Cluniacenses, Crúzios e Santiaguistas

Paulo Simões Lopes

Para a fundação de um estado basta reunir as condições favoráveis. Já uma nação, não se funda! Lentamente, com avanços e recuos, vai-se formando em redor de pessoas com uma identidade comum. A nossa nação formou-se por volta do séc. XV, ou até mais tarde e, foram muitos os determinantes deste presente. A natureza dos acontecimentos não os obriga a serem todos factos históricos, uns são objetivos, outros serão subjetivos, incorporam a dedução e análise sobre estes citados conhecimentos. Nessa perspetiva, o dia 25 de julho é o dia de São Tiago, da Batalha de Ourique, onde o D. Afonso Henriques se autoproclama Rei dos Portugueses e, por coincidência dos factos, o dia do seu nascimento, há precisamente 909 anos. […]

artigo completo

Para a fundação de um estado basta reunir as condições favoráveis. Já uma nação, não se funda! Lentamente, com avanços e recuos, vai-se formando em redor de pessoas com uma identidade comum. A nossa nação formou-se por volta do séc. XV, ou até mais tarde e, foram muitos os determinantes deste presente. A natureza dos acontecimentos não os obriga a serem todos factos históricos, uns são objetivos, outros serão subjetivos, incorporam a dedução e análise sobre estes citados conhecimentos. Nessa perspetiva, o dia 25 de julho é o dia de São Tiago, da Batalha de Ourique, onde o D. Afonso Henriques se autoproclama Rei dos Portugueses e, por coincidência dos factos, o dia do seu nascimento, há precisamente 909 anos.

Em plena Idade Média, há cerca de mil anos, Coimbra era habitada por correntes monásticas que influenciavam a formação do território. A cidade medieval acolhia peregrinos e caminheiros, cruzados e mercenários, trabalhadores e ladrões, vilões e gente de paz. O afluxo de forasteiros obrigava a cidade a crescer sob a proteção de ordens religiosas: Mosteiro de Celas – Ordem de Cister, Santa Justa – Ordem de Cluny, Santa Cruz – Ordem de Santa Cruz e Igreja de Santiago – Ordem de Santiago, esta última fazendo parte de uma rede próxima de igrejas jacobeias que, entre o que cobravam e ofereciam, sobrava para os que seguiam a rota do Caminho de Santiago. Os peregrinos vindos da portagem, depois da Porta de Almedina, sem entrarem na ‘Cidade Muralhada’, encontravam ali o seu porto de abrigo.

Ora, a veneração ao Apóstolo S. Tiago e a promoção do Santuário de Compostela surgiram da intercedência do Santo nas conquistas dos cristãos. A igreja de Coimbra foi erguida no século XII, em louvor dos Espatários (Cavaleiros de Santiago) e da preciosa ajuda de D. Fernando I (o Magno) na conquista da cidade em 1064. Neste contexto, não se pode ignorar a situação ‘geo-eclesial’ e a disputa entre Compostela e Braga. A primeira detinha dioceses como as de Coimbra e Lisboa. A segunda, as de Orense e Tui. Aliás, é desta disputa acérrima que resulta a ‘emancipação’ de D. Afonso Henriques, que toma o partido de Braga, muito por influência da Ordem de Cluny que o revolta contra o Conde de Trava, aliado da sua mãe, D. Teresa da Leão. No que concerne à igreja de Coimbra, só em 1183, na presença de D. Afonso Henriques, é que o arcebispo compostolense abdicou dos seus direitos a favor da Sé de Coimbra.

Imagine-se o episódio em que o Infante Regente Dom Pedro (Duque de Coimbra) e o seu grande amigo, D. Álvaro Vaz de Almada (um dos melhores cavaleiros da Europa e um dos Doze de Inglaterra, de um ato cavalheiresco descrito em ‘Os Lusíadas’), terão jurado, com as mãos sobre uma hóstia, não sobreviver um ao outro no esperado reencontro com o seu sobrinho, D. Afonso V. Poucos dias depois, na Batalha de Alfarrobeira, este ilustre cavaleiro de mil aventuras e glórias, com o título de Conde de Avranches e o grau de Cavaleiro da Ordem da Jarreteira atribuído pelo Rei Henrique VI (cujas armas figuram no exclusivíssimo St. George Hall, no Castelo de Windsor) ao saber da morte do ‘irmão de armas’ procurou a sua, gritando “Ó corpo, sinto que não podes mais e tu, minha alma, já tarda”.

Depois de um passado impressivo, a igreja de São Tiago foi cortada pela capela-mor para dar espaço à escura e estreitíssima Rua do Coruche (hoje Visconde da Luz), e chegou a ter edificada sobre ela uma habitação. Pouco restou da traça original da velha igreja românica, mas a cor de ouro da sua pedra calcária deixa imaginar o seu passado marcante na história da nação e de Coimbra.

Diário As Beiras, 201800725

Isabel, Infanta de Aragão & Rainha de Portugal

Paulo Simões Lopes

(Quando as fronteiras eram disputadas entre famílias e em campo aberto, a Rainha D. Isabel de Aragão, debilitada da peregrinação a Santiago de Compostela, seguiu por um rio de lágrimas até às fortalezas de Estremoz para acalmar dois poderosos monarcas consanguíneos, D. Afonso IV (seu filho) e D. Afonso XI de Castela (seu neto, filho de D. Constança), casado com D. Maria de Portugal (filha de D. Afonso IV). Desaconselhada a fazer a viagem, entre viver e servir, optou pela dolorosa missão. Afadigada e doente, aos quatro dias de julho (quinta-feira) de 1336, encarregou a Mãe de Deus de receber a sua alma: “Maria, mater gratiae, / dulcis parens clementiae / tu nos ab hoste protege, / et mortis hora suscipe.” Junto do leito, estavam os netos, seu filho e sua nora, a rainha D. Beatriz. Logo que entrou no sono feliz dos justos, fez-se a sua vontade e foi trasladada, tendo chegado ao seu “Mostejro de Sancta Clara” no dia 11 de julho, faz hoje 682 anos. […]

artigo completo

Quando as fronteiras eram disputadas entre famílias e em campo aberto, a Rainha D. Isabel de Aragão, debilitada da peregrinação a Santiago de Compostela, seguiu por um rio de lágrimas até às fortalezas de Estremoz para acalmar dois poderosos monarcas consanguíneos, D. Afonso IV (seu filho) e D. Afonso XI de Castela (seu neto, filho de D. Constança), casado com D. Maria de Portugal (filha de D. Afonso IV). Desaconselhada a fazer a viagem, entre viver e servir, optou pela dolorosa missão. Afadigada e doente, aos quatro dias de julho (quinta-feira) de 1336, encarregou a Mãe de Deus de receber a sua alma: “Maria, mater gratiae, / dulcis parens clementiae / tu nos ab hoste protege, / et mortis hora suscipe.” Junto do leito, estavam os netos, seu filho e sua nora, a rainha D. Beatriz. Logo que entrou no sono feliz dos justos, fez-se a sua vontade e foi trasladada, tendo chegado ao seu “Mostejro de Sancta Clara” no dia 11 de julho, faz hoje 682 anos.

Figura-chave do quadro político peninsular, levou a paz a D. Dinis e ao insubordinado infante D. Afonso, aos reis de Castela e de Aragão, a D. Afonso Sanches e a D. Afonso IV. Dos muitos gestos de apaziguamento, um está perpetuado no Padrão do Campo Pequeno. Desprovido dos ornamentos originais, chegou-nos com uma singela inscrição comemorativa das negociações que evitaram a batalha de Alvalade entre D. Dinis e seu filho, o príncipe D. Afonso.

A ligação de Elisabet d’Aragó a Portugal começa na Corte dos reis de Aragão, em Barcelona, com o casamento por procuração. A bênção nupcial foi celebrada na presença da nobreza e da corte, em Trancoso. Fixa-se em Coimbra, no palácio da Alcáçova e, com a morte de D. Dinis, muda-se para o paço que mandara construir junto à igreja de Santa Clara. O rio Munda de águas indomáveis, tanto enriquecia os campos de cultivo contíguos ao Mosteiro, como inundava os aposentos da comunidade de Clarissas. A má arquitetura da ponte que unia as margens acelerou a sorte de todo o vale. Transformada em dique, reteve os inertes arrastados pelo rio e afundou o mosteiro. Um novo complexo conventual e uma igreja monástica seiscentista foram então erguidos umas dezenas de metros acima, no monte de Nossa Senhora da Esperança. Dali se observava o “oásis maravilhoso do desterro deste mundo”. Dez anos depois da morte da última clarissa, a Rainha D. Amélia atribui a guarda do túmulo às Ir. de S. José de Cluny, até que o fervor republicano determina a sua expulsão. (“Sim, nós saímos, mas… voltaremos!”, responde a Ir. Inês de Santa Maria a Afonso Costa). Temendo pela sorte do túmulo, um movimento popular obriga a que este seja entregue à Irmandade da Rainha Santa e assim chega aos nossos dias.

Pouco acrescentei com este breviário. Talvez não saibam que o túmulo de prata, pago pelo povo de Coimbra, esteve escondido da falta de respeito dos soldados de Massena pelos nossos tesouros. No decorrer da “Guerra Peninsular”, a preciosidade chegou a permanecer entaipada, paredes meias com a grande sala do refeitório. Os franceses ali aquartelados estiveram a poucos centímetros do desejado túmulo isabelino, onde repousa a “filha de um rei em quem estavam unidos os brasões de todos os reis da Europa, Pedro II de Aragão; mulher de um rei que foi árbitro dos reis em todos os pleitos que tiveram em seu tempo as coroas de Espanha, Dionísio de Portugal; mãe de um rei, Afonso IV, de quem descendem todos os monarcas e príncipes da Cristandade, não vivendo hoje nenhum, que o melhor sangue que tem nas veias não seja de Isabel” (Sermão da Rainha Santa Isabel, Padre António Vieira).

A seguir ao Terramoto de 1755, a Vereação elegeu também a Rainha Santa como protetora da cidade e, dois anos depois, o Secretário de Estado autorizou a Câmara a INCORPORAR-SE nas festividades em honra da padroeira. É curioso que tenham sido os republicanos, uma semana após a revolução de 1910, através do feriado municipal, a perpetuar a memória da Rainha que foi coroada duas vezes.

Ao relacionar estes acontecimentos com as festas da cidade, porque desacertam com o nome da festa (“Coimbra Festas da Cidade e da Rainha Santa Isabel”, 2018; “Coimbra Festas da Cidade”, 2017; “Festas da Cidade de Coimbra e da Rainha Santa”, 2016; “Festas da Cidade de Coimbra”, 2015…)? Porque arredam a padroeira do cartaz das festas? Por último, porque se despreza uma figura cujo carisma é a Paz e a Concórdia em vez de aproveitar tudo o que nos chega do passado e tanta aplicação continua a ter nos nossos dias?

Numa contrapartida bem controversa assiste-se ao nascimento de um novo símbolo da cidade, a partir de uma das inúmeras fábulas construídas em redor do brasão da cidade. Para o caso, valeu a figura fantasmática da princesa Cindasundam, de Fr. Bernardo de Brito, acusado pelos pares de “impostor e forjador de mentiras”. O desacerto não prevalecerá! Se nem as areias do Mondego conseguiram soterrar a Rainha Santa ainda menos conseguirão os mortais. De nada vale tentar deturpar ou diminuir a imagem da pacificadora, que, de olhos no céu, sobre o Cálice (sangue) pediu por tréguas (“por jujz, e não por armas”) entre o Leão (de Castela) e o Dragão (de Portugal).

Diário As Beiras, 201800711

A propósito de futebol

Paulo Simões Lopes

(Entre “Um ensaio sobre a lucidez” ou “A propósito de futebol”, optei pelo adequado à época – assim sabe o que vai ler)

A palavra ‘ética’, que vem do grego ‘ethos’, significa, literalmente, ‘morada’, ‘habitat’ ou ‘refúgio’. Já ‘ethos’ encontra a sua origem no adjetivo ‘ethike’ (servia para quantificar um determinado saber) e foi explorado por Aristóteles na expressão ‘ethike pragmatéia’ para designar o exercício das virtudes morais e da excelência humana. O significado de ‘ética’ pode evoluir, portanto, da ‘morada’ até ao ‘costume’ (estilo de vida), sendo por isso um substantivo complexo, que incorpora a ideia de que o espaço se torna habitável pela ação do homem. No sentido que lhe quero dar, é o de que teremos o mundo que formos capazes de construir. Por um lado, admito o axioma de Protágoras (“o homem é a medida de todas as coisas”) e, portanto, o que é válido num determinado lugar, não vale, necessariamente, noutro. Por outro lado, não abdico da existência de um conjunto de valores básicos e transversais a toda a sociedade ou a toda a humanidade. […]

artigo completo

(Entre “Um ensaio sobre a lucidez” ou “A propósito de futebol”, optei pelo adequado à época – assim sabe o que vai ler)

A palavra ‘ética’, que vem do grego ‘ethos’, significa, literalmente, ‘morada’, ‘habitat’ ou ‘refúgio’. Já ‘ethos’ encontra a sua origem no adjetivo ‘ethike’ (servia para quantificar um determinado saber) e foi explorado por Aristóteles na expressão ‘ethike pragmatéia’ para designar o exercício das virtudes morais e da excelência humana. O significado de ‘ética’ pode evoluir, portanto, da ‘morada’ até ao ‘costume’ (estilo de vida), sendo por isso um substantivo complexo, que incorpora a ideia de que o espaço se torna habitável pela ação do homem. No sentido que lhe quero dar, é o de que teremos o mundo que formos capazes de construir. Por um lado, admito o axioma de Protágoras (“o homem é a medida de todas as coisas”) e, portanto, o que é válido num determinado lugar, não vale, necessariamente, noutro. Por outro lado, não abdico da existência de um conjunto de valores básicos e transversais a toda a sociedade ou a toda a humanidade.

Quando se apela à necessidade de redescobrirmos a versão primordial da nossa identidade, considerando que antes da nossa formação para coexistirmos como animais sociais, “fomos criados à imagem e semelhança de Deus”, não estamos a querer o endeusamento do homem, nem a conceção de um homem novo, trans-humano, ‘ciber-robotizado’ e aumentado que a inteligência artificial acabará por trazer. Estamos, simplesmente, a sugerir que nos concentremos na nossa singularidade e abandonemos a enfatização naquilo que desfoca diariamente a nossa originalidade: a inveja, a deslealdade, a ingratidão, a ambição desmedida ou o ensaio de estereótipos e criticas à imagem dos que desfilam à nossa frente. Ignoramos, com uma velocidade inversa à anterior, a máscara dos que vivem na aparência, desconsiderando sem sensatez Pascal: “O homem não é anjo nem besta, e por desgraça quem quer ser anjo acaba por ser besta” (LI, do Artigo XXIV – Da Justiça, in Pensamentos).

Chegados à madrugada da nova era da inteligência artificial, toleramos a errata da ‘ética artificial’ que já não surpreende com a sua capacidade de alterar o conhecimento em função das circunstâncias. Abundam entre nós os maus exemplos e é, por isso, de questionar em que áreas formativas estamos a errar, para termos tais níveis de consciência coletiva e de educação para a cidadania.

A este e a propósito de futebol, é curioso refletir sobre o episódio que envolveu o treinador da seleção espanhola e o presidente da Real Federação Espanhola de Futebol. Este último, ao ser informado, cinco minutos antes do anúncio oficial feito pelos merengues, que o seu treinador iria para o Real Madrid, sem hesitação, dispensou-o, mesmo que a poucas horas do inicio do Mundial (“No se pueden hacer así las cosas y menos a cinco minutos antes del anuncio”). Raramente existe uma razão absoluta (e há a razão do coração que tem “razões que a própria razão desconhece“), mas, desta vez, registei com satisfação a inexistência de uma única linha a justificar o injustificável. Coletivamente fomos todos Real Federação Espanhola, apesar de alguns ensaiarem, em surdina, a troca da ética pela estética, negando a credibilidade, a honra, a integridade, a lealdade, a justiça, a responsabilidade, a confiança e até a gratidão. Infelizmente são muitos os que sustentam a sua razão numa profunda crise de valores, qual expoente da construção do animal social, apresentam-se com uma coluna tão consistente como a da alforreca. Regem-se pela escala de ‘sucesso’ e julgam-se íntegros, porque confundem retidão com a linha direita da seda.

Diário As Beiras, 201800627

Numerus Clausus

Paulo Simões Lopes

As massas económicas, sociais e políticas que compõem o nosso território são diversas e acomodam boas razões para se repensar a política de coesão territorial. A hierarquia regional evidencia, por exemplo, uma riqueza por habitante em Lisboa nos 106% da média da UE e de 59% no norte do país. As áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto somam 44% da riqueza produzida no país, 34% do emprego, 31% da população e 65% das Instituições de Ensino Superior (IES). Sobre a distribuição geográfica deste recurso estratégico para a sociedade do conhecimento, sabemos que, entre 2001 e 2006, a população residente nas áreas Metropolitanas de Lisboa e do Porto aumentou 6% e diminuiu 0,6% (respetivamente) e, entre 2009 e 2016, os alunos no ensino secundário diminuíram 14% em Lisboa e 19% no Porto. Apesar disso, e em contra-ciclo, entre 2001 e 2016, as vagas no Curso Nacional de Acesso (CNA) aumentaram 42% em Lisboa, 13% no Porto e diminuíram 9% no resto do país. […]

artigo completo

As massas económicas, sociais e políticas que compõem o nosso território são diversas e acomodam boas razões para se repensar a política de coesão territorial. A hierarquia regional evidencia, por exemplo, uma riqueza por habitante em Lisboa nos 106% da média da UE e de 59% no norte do país. As áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto somam 44% da riqueza produzida no país, 34% do emprego, 31% da população e 65% das Instituições de Ensino Superior (IES). Sobre a distribuição geográfica deste recurso estratégico para a sociedade do conhecimento, sabemos que, entre 2001 e 2006, a população residente nas áreas Metropolitanas de Lisboa e do Porto aumentou 6% e diminuiu 0,6% (respetivamente) e, entre 2009 e 2016, os alunos no ensino secundário diminuíram 14% em Lisboa e 19% no Porto. Apesar disso, e em contra-ciclo, entre 2001 e 2016, as vagas no Curso Nacional de Acesso (CNA) aumentaram 42% em Lisboa, 13% no Porto e diminuíram 9% no resto do país.

Só descendo da grande cidade, compreenderão de que sofre o país. Não bastasse esta ‘estratégia’ de desenvolvimento territorial, destaco outros dois contributos para a morte lenta da província. O primeiro resulta da aplicação dos Fundos Europeus Estruturais e de Investimento, que estão a ser desviados do país ’atrasado’, das “regiões de convergência”, para serem aplicados na capital, numa clara violação da terceira dimensão do Tratado de Lisboa – o da coesão territorial. O segundo, mais dramático, encontra a sua origem no inverno demográfico. O cálculo é grosseiro, eu sei, mas evidencia o efeito arrasador do declínio da família humana: se fizermos corresponder aos 116.002 nados-vivos de 1999 às 50.838 vagas no CNA de 2017, na mesma relação, aos 86.154 nados-vivos de 2017 corresponderão, em 2035, 37.157 vagas (menos 26%)!

O governo estaria muito bem se fosse este o enquadramento para diminuir 5% das vagas do CNA em nove IES de Lisboa e do Porto e aumentar na província. Claro que a decisão não é consensual. A exemplo, pode desproteger quem tem um nível socioeconómico mais baixo ou pode não garantir o preenchimento das vagas (no CNA 2017/18, ficaram por preencher 20% das vagas em onze IES). No entanto, como não apresentou medidas de descriminação positiva articuladas, nem um plano concertado capaz de devolver a atratividade ao território, resta saber se os 5%, de per si, vão fixar pessoas na província. Aqui divirjo das (poucas) reações públicas! A medida é notável, tanto por esconder a ideia peregrina de retirar às IES do Interior um dos objetivos do ensino superior (o da prossecução dos estudos na área e Instituição de preferência do aluno), como, surpreendentemente, por traduzir-se num efeito inverso ao que anuncia! Ao estimular as IES das duas maiores cidades a especializar a sua oferta na pós-graduações (”darmos maiores possibilidade a Lisboa e ao Porto de avançarem na pós-graduação”), o ministro Manuel Heitor está a empurrar o 1º ciclo (licenciaturas) para a província, aliás, como (erradamente) sustenta: “a tendência nas principais universidades europeias é terem cada vez mais estudantes de pós-graduação do que de formação inicial. Devemos convergir nesse sentido”. Se interpreto bem, a maioria de esquerda encontrou o pragmatismo da governação na solução neoliberal de trocar as vagas reguladas com propinas fixas, por vagas abertas ao mercado.

Ora, se a inovação provém das comunidades científicas onde existe uma forte capacidade de investigação, se as IES são as principais pulverizadoras dessa investigação pelo território, se a valorização do conhecimento reside, especialmente, nos programas doutorais, e, como rematou o reitor João Gabriel Silva, o Estado “jamais terá recursos para empregar todos os doutorandos” tendo de ser as empresas a fazê-lo, ante o exposto, como é que centralização destes programas nas grandes cidades se enquadra como uma “política pública justa” que visa combater “os desiquilíbrios territoriais”?

Diário As Beiras, 201800613

Que dizer de quem já (se) disse tudo?

Paulo Simões Lopes

Recuo ao tempo em que era uma aventura ir a Sul, para recordar os adultos, com o jornal Expresso aberto na areia, a discutirem umas coisas da saúde, e nós, miúdos, sem lhes darmos relevância, notávamos que da tertúlia sobressaía uma voz. Não me lembro de uma frase desses momentos, mas confirmo a forma apaixonada e a força contagiante que António Duarte Arnaut entregava à discussão do que veio a ser o sistema de cuidados médicos, universal e gratuito. Anos mais tarde, na minha primeira urgência, percebi a importância da sua ação. Já o respeitava, passei a estimá-lo. Para sublinhar a paternidade do Sistema Nacional de Saúde basta relembrar uma das sessões de trabalho na Assembleia da República, quando o então Ministro dos Assuntos Sociais foi chamado ao telefone e, do outro lado, ouviu a pergunta provocatória: “É o SNS?”. Respondeu: “Sim, fala o próprio”. […]

artigo completo

“Desfolhem a minha vida e talvez encontrem nela um lampejo do azul celeste que alimentou o sonho da minha juventude de uma sociedade livre, justa e fraterna, solidária e tolerante”.

Recuo ao tempo em que era uma aventura ir a Sul, para recordar os adultos, com o jornal Expresso aberto na areia, a discutirem umas coisas da saúde, e nós, miúdos, sem lhes darmos relevância, notávamos que da tertúlia sobressaía uma voz. Não me lembro de uma frase desses momentos, mas confirmo a forma apaixonada e a força contagiante que António Duarte Arnaut entregava à discussão do que veio a ser o sistema de cuidados médicos, universal e gratuito. Anos mais tarde, na minha primeira urgência, percebi a importância da sua ação. Já o respeitava, passei a estimá-lo. Para sublinhar a paternidade do Sistema Nacional de Saúde basta relembrar uma das sessões de trabalho na Assembleia da República, quando o então Ministro dos Assuntos Sociais foi chamado ao telefone e, do outro lado, ouviu a pergunta provocatória: “É o SNS?”. Respondeu: “Sim, fala o próprio”.

Não obstante o sentido figurado, o substantivo “pai” assenta-lhe que nem uma luva. Em primeiro, porque, apesar de não ter inventado o SNS (a aspiração do Movimento das Carreiras Médicas remontava a 1961), só um poeta podia acreditar em mudar o mundo. Em segundo, porque um pai é aquele que cria, ama, protege, educa e responde às necessidades básicas de desenvolvimento do filho. Em terceiro, porque a sua decisão tem tanto de monumental como de singeleza (“apanhei-me ministro sem querer, tinha a caneta na mão e escrevi aquele despacho”). Um Homem de integridade absoluta, do melhor que a espécie humana pode conceber! Dedicado às causas, era insubmisso, lúcido, verdadeiro, apaixonado, humanista e corajoso. Colocou o Estado a cuidar dos mais desprotegidos e, de caminho, elevou os nossos índices da saúde para os níveis Europeus. Vai fazer falta ao país!

Foi um dos que mais contribuiu para o nosso bem-estar e, como a cereja no topo do bolo, um lutador honrado na verdadeira aceção da palavra, como se lê neste diálogo que manteve, à época, com o Primeiro Ministro – ”Mário, o SNS é um ponto de honra do programa do Governo. E isso é contigo. Mas também meu, comigo próprio. A mim ensinaram-me a respeitar a palavra. A palavra dada é a palavra honrada. Eu não mudo uma linha. O programa do Governo ou é para cumprir ou eu vou-me embora”. Outros tempos!… Os princípios éticos e morais que moldaram a sua dimensão humana eram genuínos, assim, pela sua essência, é inextinguível!

Como agradecer-lhe? Desejando o mesmo que ambicionou no “Último poema” a Miguel Torga (Canto de Job, 1996):

Murcharam os rododendros de S. Martinho

e a azálea que um dia plantaste

ergueu-se sobre o muro do quintal

para saber se era verdade

que nunca mais sentiria a ternura dos teus dedos.

 

Se Deus existe, estava à tua espera

para continuarem a interminável discussão

sobre o absurdo da vida e sobre

o escândalo da morte, e então disseste:

aqui estou a pedir-te contas

do último poema que me não deixaste escrever

mas que trago lavrado na alma

como um ruflar das vozes intemporais

de meus avós cavadores e almocreves.

 

Deus hesitou, ia a pedir desculpa,

mas ao ver-te inteiro e ao natural

com teu puro rosto de camponês,

sorriu e disse:

precisei de ti para semeares de poesia

o mar infinito da eternidade.

Diário As Beiras, 201800530

Aprender enquanto ensinam,

ensinar enquanto aprendem

Paulo Simões Lopes

Li algures que alguém transporta livros num saco com a mensagem estampada: “Não me roubem, só levo livros”. Presume que o “velhaco” sabe ler. É um bom princípio! Provavelmente este imaginativo saco terá sido criado por uma empresa sediada num país desenvolvido, produzido por uma indústria numa economia subdesenvolvida e, por fim, vendido numa cadeia de lojas, nos vários idiomas da aldeia global. Estas economias são distinguíveis pelas capacidades intrínsecas para estimular e valorizar os seus ativos intangíveis, numa primeira instância representada na importância que o país atribui à educação e, num segundo nível, na abordagem dada pelas empresas à capacitação dos seus trabalhadores, reconhecendo-lhes importância como ativo das organizações. Quem optar pelo baixo nível de qualificações dos trabalhadores, fica-se pela informação. Quem aposta na ‘valorização do conhecimento’, está consciente que a liderança é dos criativos, inovadores e competitivos, dos que estão em permanente atualização e mutação. […]

artigo completo

Li algures que alguém transporta livros num saco com a mensagem estampada: “Não me roubem, só levo livros”. Presume que o “velhaco” sabe ler. É um bom princípio! Provavelmente este imaginativo saco terá sido criado por uma empresa sediada num país desenvolvido, produzido por uma indústria numa economia subdesenvolvida e, por fim, vendido numa cadeia de lojas, nos vários idiomas da aldeia global. Estas economias são distinguíveis pelas capacidades intrínsecas para estimular e valorizar os seus ativos intangíveis, numa primeira instância representada na importância que o país atribui à educação e, num segundo nível, na abordagem dada pelas empresas à capacitação dos seus trabalhadores, reconhecendo-lhes importância como ativo das organizações. Quem optar pelo baixo nível de qualificações dos trabalhadores, fica-se pela informação. Quem aposta na ‘valorização do conhecimento’, está consciente que a liderança é dos criativos, inovadores e competitivos, dos que estão em permanente atualização e mutação.

As famílias sabem que níveis de escolaridade diferentes proporcionam acessos desiguais às carreiras profissionais. E que uma formação académica mais completa é um bilhete para ascender na pirâmide social e a possibilidade de auferir salários superiores (em 2016, a remuneração média de um quadro superior em Portugal era 3,5 vezes superior à auferida por um profissional não qualificado). Também não ignoram que, ao nível da carreira, o maior determinante no vencimento é a evolução que cada um consegue fazer com o conhecimento, nomeadamente através da valorização da sua aprendizagem e da formação constante ao longo de toda a vida. Sabem, ainda, que os benefícios individuais de uma formação qualificada vão muito para além das vantagens económicas. Por último, o país sabe do benefício imensurável que colhe da educação e, por isso, sente a necessidade de a desenvolver no pilar cognitivo (aprender a conhecer o mundo que o rodeia), no profissional (aprender a fazer ou adaptar a educação ao trabalho), no relacional (aprender a viver juntos e aprender a viver com os outros) e no existencial (aprender a ser através do desenvolvimento total da pessoa).

Se todos sabemos do valor deste ativo, porque tenta a tutela mudar a escola por decreto? Porque é que, em ‘paridade de poder de compra’, gastamos no sistema educativo dez vezes menos que a Alemanha? Porque é que as empresas não permitem e não aproveitam o desenvolvimento das competências proporcionado pela subida do nível médio de escolaridade? Porque é a nossa produtividade do trabalho a terça parte da Luxemburguesa? Porque oferecem as escolas superiores diplomas hoje desadequados para o mercado? Que dizer então das declarações do nosso primeiro ministro? Há 16 meses atrás, “No mundo de hoje, num país europeu, esse fator de competitividade assenta, essencialmente, nos fatores associados à inovação. Não vale a pena termos a ilusão que numa estratégia assente em baixos salários nós conseguiremos ser competitivos” e agora, “É mais importante contratar mais funcionários públicos do que aumentar os salários”.

A mensagem para mudar não é nova, basta juntar as letras estampadas no “saco” e foi uma das principais bandeiras de Roberto Carneiro. No inicio do século, defendeu a mobilização da sociedade educativa, enumerou prioridades para o ‘New Deal’ educativo, reforçou o foco nos quatro pilares da educação e lançou o repto da reciclagem dos adultos ativos, incluindo a dinamização do corpo docente, numa vinculação à construção de uma aprendizagem vitalícia centrada em “Aprender enquanto ensinam, ensinar enquanto aprendem”. O bilhete para o comboio desta segunda década é, afinal, o mesmo: o da ‘valorização do conhecimento’, num propósito do desenvolvimento pessoal, cultural, social, comunitário, profissional, de empregabilidade e, como seria lógico, também económico.

Diário As Beiras, 201800516

“igualdade de oportunidades” (para alguns!)

Paulo Simões Lopes

“Manda o Governo, através de dois secretários de estado, redefinir os procedimentos exigíveis para a concretização da matrícula ou renovação, no âmbito da escolaridade obrigatória. Para o que aqui importa e segundo os seus autores, passa a estar garantida a transparência e o combate à fraude, bem como a promoção da igualdade de oportunidades e superação das desigualdades económicas, sociais e culturais.

Um processo de intenções é sempre um bom princípio, mas este tem outro efeito tácito com o que vai conseguir, porquanto, apesar de sabermos que o combate à fraude se faz corrigindo o que a promove, e que a oportunidade, conveniência, equidade, razoabilidade e justiça social se fazem pela via fiscal e não pelo direito à melhor educação gratuita, decidiu o governo combater a ‘batotice’ generalizada nas moradas através do mecanismo que melhor revela a segregação económica, geográfica e social (a barreira da exclusão ditada pelo preço da habitação), e ignorou a raiz do problema: a existência de escolas atrativas e escolas de onde as famílias fogem a sete pés.

artigo completo

Manda o Governo, através de dois secretários de estado, redefinir os procedimentos exigíveis para a concretização da matrícula ou renovação, no âmbito da escolaridade obrigatória. Para o que aqui importa e segundo os seus autores, passa a estar garantida a transparência e o combate à fraude, bem como a promoção da igualdade de oportunidades e superação das desigualdades económicas, sociais e culturais.

Um processo de intenções é sempre um bom princípio, mas este tem outro efeito tácito com o que vai conseguir, porquanto, apesar de sabermos que o combate à fraude se faz corrigindo o que a promove, e que a oportunidade, conveniência, equidade, razoabilidade e justiça social se fazem pela via fiscal e não pelo direito à melhor educação gratuita, decidiu o governo combater a ‘batotice’ generalizada nas moradas através do mecanismo que melhor revela a segregação económica, geográfica e social (a barreira da exclusão ditada pelo preço da habitação), e ignorou a raiz do problema: a existência de escolas atrativas e escolas de onde as famílias fogem a sete pés.

São muitos os exemplos deste modus operandi, de uma certa harmonização (por baixo) do edifício escolar, como o da EB123 do Curral das Freiras, onde, depois de ter transformado uma escola desprovida de sucesso escolar numa “escola modelo”, o seu diretor foi acusado de 388 irregularidades, supostamente cometidas no preenchimento de formulários, na gestão e funcionamento da escola e na promoção do abandono escolar, como a criação de disciplinas, alterações de horários e controlo de assiduidade. Bem se vê, ousou ensaiar a visão ‘out of the box’, questionar a máquina; abolir a campainha; chamar os alunos à responsabilidade; adaptar os horários da escola aos dos autocarros; ou, ajustar os projetos extracurriculares à componente letiva. Consequências? Ao invés de corrigirem o que terá descurado e de replicarem o que originou sucesso, premeiam-no com um processo disciplinar, onde a prova para o ilibar está na impossibilidade de aprovarem o que fez. Tudo se resume, portanto, à expressão lexicalizada, ‘sim senhor’…

O próximo diretor encarregar-se-á de fazer tudo ‘by the book’, a educação por aqueles lados vai “entrar nos eixos” e as entidades não terão mais que se preocupar com as famílias que, vivendo no Funchal, punham diariamente os seus filhos a estudar no Curral. Para os restantes casos de “sucesso”, criaram um embuste que os destabilizará. Graças aos dados cedidos pela Autoridade Tributária, vão retirar às “melhores” escolas cerca de 40% das suas atuais famílias que tiveram a ousadia de utilizar o mesmo elevador social (leia-se escola) das que têm mais posses. Os que aprovam esta medida sentem-se protegidos num direito que pensam ter adquirido com a casa que compraram ali no bairro, mas essa ilusão foi-lhes dada por uma leitura curta ao 3º critério das prioridades das matrículas para os alunos do ensino básico. Verão, em pormenor, onde antes se lia os alunos que no ano anterior tenham frequentado o “mesmo estabelecimento de educação e ensino” passou a ler-se o “mesmo agrupamento de escolas”. Com esta alteração subtil, qualquer aluno que tenha frequentado o agrupamento, fica em prioridade sobre todos os restantes que se matriculem pela primeira vez nesse agrupamento, inclusive sobre os que vivem a 100 metros da escola pretendida. Aliás, se não tiver irmãos já matriculados nem beneficiar de Ação Social Escolar, é-lhe atribuído o 7º critério de prioridade, i.e., os miúdos do bairro podem ficar de fora da “sua” escola!

Não existe forma de resolver esta questão que passe, em primeiro, pela valorização e dedicação do corpo docente e a consequente equalização da qualidade do ensino. Esta alteração legislativa só alterou o critério da desigualdade de oportunidades, respondendo assim a uma vontade ainda mais segregadora, para quem a liberdade de escolha se resume ao cliché “quem quer escolher que pague”.

Diário As Beiras,201800502

Uma cidade a sobreviver

Paulo Simões Lopes

“Com a mestria habitual a conjugar o conhecimento com seriedade e humor, Carlos Fiolhais escreveu sobre a cultura da cidade: “está tão doente como a malha urbana à beira rio”. Não resisto a juntar-me, mais uma vez, a este grito de inconformismo, à defesa de uma cidade que já foi da ‘Sofia’, mas agora está sufocada pelas ‘consciências’ sem decoro que ignoram as gerações vindouras. Há uma cidade que está a morrer e, tal como um buraco negro, suga a outra cidade que se renova a cada momento! Nada de novo. Basta reler “Nesta Coimbra que amanhece” de Fernando Seabra Santos (já com 5 anos, mas tão atual).

Um percurso pelo bem ‘Universidade de Coimbra, Alta e Sofia”, a comemorar o ‘Dia Internacional dos Monumentos e Sítios’, poderia trazer a este texto maior desânimo, mas basta atravessar a ponte de tirantes e anotar a única intervenção que lhe foi feita: antes Ponte Europa, depois Ponte Rainha Santa Isabel. Da imensa luz que a iluminava, atravessava as nuvens e se perdia da vista no céu visível, restam apenas três pontos de luz, fracos, que não iluminam a suspensão axial, quanto mais o mastro de 90 metros. À boa maneira da terrinha, mudaram-lhe o nome a pensar na proteção da Rainha Santa e não na homenagem a Isabel de Aragão e à fraternidade cristã. Ignoraram, com certeza, que à luz da ciência, muita da força da Rainha provinha do conhecimento do poder curativo das plantas e da anatomia do corpo humano. Fazer a ‘luz’ é outra coisa, é tarefa d’Ele! Isabel foi, é e será, amor  […]”

artigo completo

Com a mestria habitual a conjugar o conhecimento com seriedade e humor, Carlos Fiolhais escreveu sobre a cultura da cidade: “está tão doente como a malha urbana à beira rio”. Não resisto a juntar-me, mais uma vez, a este grito de inconformismo, à defesa de uma cidade que já foi da ‘Sofia’, mas agora está sufocada pelas ‘consciências’ sem decoro que ignoram as gerações vindouras. Há uma cidade que está a morrer e, tal como um buraco negro, suga a outra cidade que se renova a cada momento! Nada de novo. Basta reler “Nesta Coimbra que amanhece” de Fernando Seabra Santos (já com 5 anos, mas tão atual).

Um percurso pelo bem ‘Universidade de Coimbra, Alta e Sofia”, a comemorar o ‘Dia Internacional dos Monumentos e Sítios’, poderia trazer a este texto maior desânimo, mas basta atravessar a ponte de tirantes e anotar a única intervenção que lhe foi feita: antes Ponte Europa, depois Ponte Rainha Santa Isabel. Da imensa luz que a iluminava, atravessava as nuvens e se perdia da vista no céu visível, restam apenas três pontos de luz, fracos, que não iluminam a suspensão axial, quanto mais o mastro de 90 metros. À boa maneira da terrinha, mudaram-lhe o nome a pensar na proteção da Rainha Santa e não na homenagem a Isabel de Aragão e à fraternidade cristã. Ignoraram, com certeza, que à luz da ciência, muita da força da Rainha provinha do conhecimento do poder curativo das plantas e da anatomia do corpo humano. Fazer a ‘luz’ é outra coisa, é tarefa d’Ele! Isabel foi, é e será, amor.

A cidade está de braços cruzados a escurecer, a perder a sua aparência e a tornar-se num logro. Poderia continuar a metaforizar sobre esta ausência de ‘luz’, mas prefiro assinalar um ano sobre o estudo de diagnóstico prospetivo da Região Centro, “Portugal no Centro”, da Fundação Calouste Gulbenkian. Para que serviu? Um foco para a região (era o de defender a floresta) e, outro para concluir que Coimbra só se conseguirá desenvolver com ambição e com os recursos que conseguir captar. A defesa da cidade é, afinal, a da coesão territorial e do país inconformado, que não se revê nos motivos concentracionários de Lisboa, agora transformada num “Vale do Ave” com a mão-de-obra barata e especializada que desertifica o interior.

Nem a falta de luz na ponte, nem a tinta dos sprays da ignorância carregado de desgosto, desalento, deseducação e desprovido de qualquer sentido de urbanidade, despertam as ‘consciências’! Será que, afinal, os cérebros desabitados que andam a sujar a cidade, estão só a sinalizar o caminho aos que os seguem? Mas que raio, esta escuridão não tem que ser autóctone! A Estação Velha pode ser Nova; a baixa pode regenerar-se; as margens podem abraçar o rio; os silos podem arrumar carros; a arborização pode colonizar a ruina; a barca serrana pode recriar a paisagem; a recolha do lixo pode ser seletiva; as árvores podem partilhar os passeios; os bancos podem voltar aos jardins; os museus-mausoléu podem ser ex-líbris; a videovigilância pode inibir o vandalismo; a mobilidade inteligente pode substituir a decadente; … e, a antiga lógica industrial pode transformar-se numa ilha criativa, numa fábrica de intervenção cultural que ajude a pensar, intervir e alterar o pensamento que segmenta e não valoriza, como acreditarem que o fim de uma obra arquitetónica se esgota no principal uso que lhe é dado, quando as duas curvas despertam múltiplas sensibilidades a quem as observa (é esse o dom sem fronteiras que os arquitetos introduzem na mediação artística). Há quem só veja na ponte 61.000 metros cúbicos de betão e há quem reveja naquela luz fraquinha que mal ilumina o mastro, o espelho da atual ambição estratégica e prospetiva da cidade. Quem o diz é Almada, “Os olhos são para ver e o que os olhos vêem só o desenho o sabe”.

Diário As Beiras,201800418

Fake news

Paulo Simões Lopes

“Faz esta semana sete anos que foi noticiado que não havia “verba para salários e Pensões”. Ficámos a saber o estado do país. Teixeira dos Santos sabia que só tinha liquidez no tesouro para assumir dois meses de encargos do estado e não tinha condições de pagar um empréstimo de sete mil milhões que se vencia em junho. Num dilema moral entre seguir o seu primeiro ministro ou os seus princípios académicos, numa derradeira tentativa, aumentou os impostos, reduziu as pensões e determinou os maiores cortes salariais alguma vez feitos aos funcionários públicos. O país iria entrar em ‘default’. Esta é a verdade, nua e crua! Os nossos credores queriam indicadores de confiança, mas as nossas contas estavam uma trapalhada e ninguém sabia o valor do défice de 2009, quanto mais o de 2010. O país não tinha qualquer credibilidade e o nosso “grupo” era conhecido por PIGS (Portugal, ‘Italy’, ‘Greece’ e ‘Spain’). A nossa dívida pública, descontrolada, estava a crescer ao valor astronómico de 25 mil milhões de euros ao ano. Atingido a este ponto, restava o ‘pedido de intervenção externa’ […]”

artigo completo

Faz esta semana sete anos que foi noticiado que não havia “verba para salários e Pensões”. Ficámos a saber o estado do país. Teixeira dos Santos sabia que só tinha liquidez no tesouro para assumir dois meses de encargos do estado e não tinha condições de pagar um empréstimo de sete mil milhões que se vencia em junho. Num dilema moral entre seguir o seu primeiro ministro ou os seus princípios académicos, numa derradeira tentativa, aumentou os impostos, reduziu as pensões e determinou os maiores cortes salariais alguma vez feitos aos funcionários públicos. O país iria entrar em ‘default’. Esta é a verdade, nua e crua! Os nossos credores queriam indicadores de confiança, mas as nossas contas estavam uma trapalhada e ninguém sabia o valor do défice de 2009, quanto mais o de 2010. O país não tinha qualquer credibilidade e o nosso “grupo” era conhecido por PIGS (Portugal, ‘Italy’, ‘Greece’ e ‘Spain’). A nossa dívida pública, descontrolada, estava a crescer ao valor astronómico de 25 mil milhões de euros ao ano. Atingido a este ponto, restava o ‘pedido de intervenção externa’.

O resto da história? O primeiro ministro e Teixeira dos Santos negociaram e assinaram, a 17 de maio de 2011, o Memorando de Entendimento sobre as Condicionalidades de Política Económica (Memorandum of Understanding – MoU), cabendo depois a Pedro Passos Coelho, na liderança do XIX Governo Constitucional, tirar o país do estado calamitoso em que se encontrava e honrar o compromisso de reduzir o défice das contas pública. Saúde, pensões, salários… privatizações (Aeroportos de Portugal, TAP, CP Carga, GALP, EDP, REN, Correios de Portugal, Caixa Seguros), quem quiser “tomar boa nota dos responsáveis que provocaram este caso de estudo”, é só procurar no MoU, letra por letra, com a assinatura de Teixeira dos Santos. Na educação, pode ler-se: “Reduzir custos na área de educação, tendo em vista a poupança de 195 milhões de euros, através da racionalização da rede escolar criando agrupamentos escolares, diminuindo a necessidade de contratação de recursos humanos, centralizando os aprovisionamentos, e reduzindo e racionalizando as transferências para escolas privadas com contratos de associação.” Podem tentar reescrever a história, mas esta era a realidade Pré-Troika.

Primeiro Passos Coelho e depois António Costa impuseram a reconstrução do país, a ‘Perestroika’, mas a irresponsabilidade e incompetência deixaram marcas profundas. A austeridade continua! Mário Centeno aliviou a carga fiscal sobre os vencimentos e reina um bem-estar ilusório, uma vez que a receita do estado em 2018, ao que tudo indica, vai ultrapassar a barreira histórica de 2017… e temos ainda o monstro da dívida a crescer, o maldito peso que nos curva perante os credores.

E foi com este cenário de fundo que o primeiro ministro que conduziu o País à pré-bancarrota, inspirado talvez pelo fenómeno ‘fake news’, apresentou, no passado dia 21, na Faculdade de Economia da UC, o argumento de que a “Austeridade foi ajuste de contas ideológico”. Pior do que negar a atual austeridade é querer alterar a estória dos tristes acontecimentos que nos conduziram ao “estado a que chegámos” (parafraseando Salgueiro Maia).

Releio-me e ocorre-me um certo darwinismo social, esta tendência para evoluirmos não para o que está certo, mas para o que achamos serem as expectativas da sociedade. É esta propensão para se salientarem os mais hábeis, que nos obriga a repensar a ‘escola’ em torno dos 4 pilares fundamentais da educação: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser. Cumprido este desafio, não tenho dúvidas, aumentar-se-á o nível de lucidez e honestidade da população, sobretudo das ‘elites’. Se falharmos num único aluno, falhamos como nação!

Diário As Beiras, 20180404

“Um poema ou uma árvore”

Paulo Simões Lopes

“Hoje é dia 21 de março, ‘Dia Mundial da Árvore’, ou dia mundial das árvores, se considerarmos que estão referenciadas cerca de 60.000 espécies. É lá que se protegem, ficam mais fortes, resistem ao frio e ao calor, comunicam, partilham nutrientes e hostilizam as que não são da mesma espécie, ocupando-lhes a terra disponível ou infiltrando-se nos seus troncos, de onde extraem água e nutrientes, na corrida pela copa exposta ao Sol. Há uma competição silenciosa e muito paciente. Cada árvore sabe o seu espaço e o seu tempo. A floresta é pura, cristalina, serena e mágica. É saber e alimento. Quanto melhor a conhecemos, mais complexa e sublime se nos revela […]”

artigo completo

Hoje é dia 21 de março, ‘Dia Mundial da Árvore’, ou dia mundial das árvores, se considerarmos que estão referenciadas cerca de 60.000 espécies. É lá que se protegem, ficam mais fortes, resistem ao frio e ao calor, comunicam, partilham nutrientes e hostilizam as que não são da mesma espécie, ocupando-lhes a terra disponível ou infiltrando-se nos seus troncos, de onde extraem água e nutrientes, na corrida pela copa exposta ao Sol. Há uma competição silenciosa e muito paciente. Cada árvore sabe o seu espaço e o seu tempo. A floresta é pura, cristalina, serena e mágica. É saber e alimento. Quanto melhor a conhecemos, mais complexa e sublime se nos revela.

No planeta primordial, berço da humanidade, o azul predominante era rendilhado de verde. Há uns bons milhões de anos, seguimos o nosso caminho da evolução de espécie, optando por não ficar como lapas a lamber, no fundo do mar, uma qualquer fenda vulcânica e mudámos para o ambiente terrestre, adaptámo-nos à atmosfera primitiva e passámos a retirar o oxigénio do ar, fornecido por milhares de milhões de árvores adultas, cada uma delas capaz de consumir aproximadamente 22kg de gás carbónico por ano e de libertar oxigénio suficiente para a respiração de dois adultos. Tornámo-nos oxigénio (61% da nossa massa corpórea). Mantemo-nos vivos graças ao processo de respiração celular: ao principal combustível, a glucose, um cristal sólido de sabor adocicado, misturamos-lhe o gás oxigénio, obtemos o gás carbónico que expelimos, o azoto que urinamos, a água e a energia que garantem a atividade dos nossos órgãos. Dependemos tanto deste comburente, que tivemos de contratar um exército de soldados (da paz), para nos proteger do triângulo do fogo: o calor, o combustível e o oxigénio.

Até agora, as nossas florestas (o nosso mundo) toleraram a nossa traição à Natureza e a nossa tendência para a autodestruição, mas, ultrapassado o ponto de não retorno da deflorestação, entraremos num ciclo onde a biosfera natural já não nos conseguirá proteger, inclusive passará a ampliar a destruição. Esquecemos que as civilizações se afundam quando os seus ambientes são destruídos, como aconteceu aos rapanuis na Ilha de Páscoa, há cerca de 1700 anos, desconsiderando que isso vai acontecer à escala mundial, não tarda, depois de arrasarmos os menos de 10% que restam da ’Mata Atlântica’. Começámos por destruir o Éden, a floresta primitiva, a megafauna, os legumes e as oleaginosas consumidas in natura. Abandonámos a comida variada, sazonal e natural. Aprisionámos a natureza e acabaremos por nos extinguir depois de abatermos a floresta, poluirmos o ar, contaminarmos a água e secarmos a terra onde praticamos o cultivo calibrado, adubado e plastificado. Se não invertermos este caminho, não precisaremos de um cataclismo idêntico ao que pôs fim à era mesozóica (dos répteis) e deu início à cenozóica (dos mamíferos), o ecocídio captará finalmente a nossa atenção.

Hoje é dia 21 de março, ‘Dia Mundial da Poesia’. Porque não tirar aquele verso “plantar uma árvore”, do “baú das promessas” e, cada um, plantar mesmo uma árvore, tal como pediu Eugénio de Andrade, para um triângulo de terra escura na Foz: “plantem nesse lugar um plátano, onde o vento enroladinho no sono possa dormir sem sobressaltos; ou uma oliveira, ou um chorão, e à sua roda ponham uma sebe da flor doce e musical de espinheiro branco. […] a terra ficará mais habitável. Um poema ou uma árvore podem ainda salvar o mundo”!

Diário As Beiras, 20180321

“No place for children” – Muhammad Najem e o inferno na terra

Paulo Simões Lopes

“As imagens de acontecimentos trágicos entram no nosso quotidiano com uma cadência tão alta que os nossos cérebros se fecham a crimes contra a humanidade como o homicídio, o extermínio, a escravidão, o genocídio ou o massacre. Acreditava que davam nomes às maiores barbáries para nos envergonharmos do passado e evitarmos a crueldade futura, mas descobri, com o tempo, que são somente nomes distribuídos numa escala, onde se quantifica o número de mortes: ‘Holocausto Judeu’, ‘Genocídio Ucraniano’, ´Sangue no Camboja’, ‘Terror vermelho’, ‘Massacre em Ruanda’, ‘Holodomor’, ‘Gulag’, ‘Estupro de Berlim’… tanto desamor, tantos mortos!

Em breve existirá um nome para a guerra que começou em 2011. Primeiro um grupo de jovens foi torturado por ter escrito mensagens revolucionárias num muro, depois as manifestações inspiradas na ‘Primavera Árabe’ e, num instante, este filme de terror. Passados 7 anos, a Síria está assente em escombros, o leite está 20 mil vezes mais caro, 5 milhões de pessoas refugiadas e os que ficaram já sepultaram 450.000 mortos […]”

artigo completo

As imagens de acontecimentos trágicos entram no nosso quotidiano com uma cadência tão alta que os nossos cérebros se fecham a crimes contra a humanidade como o homicídio, o extermínio, a escravidão, o genocídio ou o massacre. Acreditava que davam nomes às maiores barbáries para nos envergonharmos do passado e evitarmos a crueldade futura, mas descobri, com o tempo, que são somente nomes distribuídos numa escala, onde se quantifica o número de mortes: ‘Holocausto Judeu’, ‘Genocídio Ucraniano’, ´Sangue no Camboja’, ‘Terror vermelho’, ‘Massacre em Ruanda’, ‘Holodomor’, ‘Gulag’, ‘Estupro de Berlim’… tanto desamor, tantos mortos!

Em breve existirá um nome para a guerra que começou em 2011. Primeiro um grupo de jovens foi torturado por ter escrito mensagens revolucionárias num muro, depois as manifestações inspiradas na ‘Primavera Árabe’ e, num instante, este filme de terror. Passados 7 anos, a Síria está assente em escombros, o leite está 20 mil vezes mais caro, 5 milhões de pessoas refugiadas e os que ficaram já sepultaram 450.000 mortos.

Há poucos dias, numa conferência na escola do meu filho, quatro ilustres convidados apresentaram os seus trajetos académicos e profissionais. No meio das estórias, a do quotidiano de um jornalista, que tanto pode estar a cobrir o Carnaval no Rio como destacado num campo de refugiados, onde lhe desfalecem nos braços “jovens como vocês, mas com 15 kg de peso”. Não é fácil passar este testemunho a uma plateia de duas centenas de jovens no início do secundário, por isso retive a imagem dos olhos embaciados do José Manuel Portugal. Quando à noite revi as noticias do dia, as bombas no enclave de Ghouta soavam-me de forma diferente.

Ghouta é uma zona agrícola em torno da cidade de Damasco. A parte oriental, sob controlo do Exército Livre da Síria (rebeldes moderados apoiados pela Turquia, Arábia Saudita, Quatar e pela Frente al-Nusra, subsidiária da al-Qaeda), está encurralada por Bashar al-Assad e pelos que o suportam (Russos e Iranianos através dos xiitias libaneses do Hezbollah). O conflito está generalizado. A norte com os Curdos apoiados pelos Ocidentais. No que resta do país, contra todos, numa espécie de guerra dentro da guerra, estão os radicais islâmicos do Daesh, que os americanos ajudaram a criar em ‘Camp Bucca’ e em ‘Abu Gharaib’, financiados por todos nós cada vez que vamos às bombas (de gasolina).

Os corredores humanitários de acesso a Ghouta são bombardeados pelos dois lados. De lado de fora, Bashar al-Assad está empenhado em dar um exemplo aos Curdos e, do lado de dentro, os que não são rebeldes servem de escudo e testemunham o cenário dantesco, como o faz Muhammad Najem, repórter de guerra aos 15 anos. É irrelevante que este jovem esteja a ser utilizado! Há alturas da vida em que servir é sinónimo de respirar. O que ele nos dá a conhecer pelo twitter é suficiente para perguntar qual o maior assassino? O que bombardeia hospitais repletos de indefesos, ou o que se esconde com a kalashnikov atrás das crianças ou o que assiste, impávido, à discussão do jogo de tabuleiro pela supremacia do Médio Oriente. O genocídio é publicitado por uma geração que já perdeu 6.000 escolas. São 2 milhões de crianças sem um porto de abrigo e sem aprendizagem. Um conflito brutal, em que a violência é uma prática comum e a escola é substituída pelo treino militar, que lhes proíbe a infância e rouba o futuro. “Não há império que valha que por ele se parta uma boneca de criança. Não há ideal que mereça o sacrifício de um comboio de lata.” (no Livro do Desassossego).

Certamente que surgirá um nome “próprio” para mais um ato ignóbil. Mais uma medalha de lapela neste vespeiro, ao lado da ‘Guerra dos Seis Dias’ ou do ‘Yom Kippur’. E sem percebermos que, para salvar a humanidade, podemos começar por salvar uma vida… em Goutha.

Diário As Beiras, 20180207

Ranking sem batota

Paulo Simões Lopes

“Ao fim de 15 anos de rankings, era suposto que e tivesse atingido uma maturidade na sua análise, capaz de os encarar como um ponto de partida para a formulação de políticas educativas e não um ponto de chegada. Infelizmente estas ordenações não têm servido para corrigir percursos. As escolas publicitam os resultados quando são bons, silenciam-se quando são menos bons e descredibilizam os rankings quando resultados insistem em não aparecem, argumentando que a métrica é redutora e não avalia a qualidade do trabalho produzido. Há interpretações (pouco isentas) para todos os gostos, o que é lamentável, até porque a estatística disponível permite ir mais longe na sua análise de modo a não só avaliar o desempenho dos alunos, como a dinâmica que cada escola impõe ao projeto educativo, que é o fator mais determinante no desenvolvimento das aprendizagens. […]”

artigo completo

Após 20 anos de análise de rankings dos “exames” deveria haver maturidade para os olhar como um ponto de partida na ajuda à formulação de políticas educacionais e não um ponto de chegada. Infelizmente, vemos que não servem para corrigir percursos. As escolas aproveitam e publicitam os resultados quando são bons, mas silenciam-se quando a avaliação é menos boa ou descredibilizam as seriações, argumentando que a métrica é redutora e não quantifica a qualidade do trabalho produzido. Há interpretações casuais para todos, o que é lamentável, até porque a estatística disponível permite deduzir muito sobre a dinâmica das comunidades educativas.

Por serem indicadores estáticos com limitações, a DGEEC desenvolveu o “indicador global dos percursos diretos de sucesso”. Apesar de subestimado, é dinâmico, evoluído, complexo e analisa “a percentagem de percursos diretos de sucesso na escola face à percentagem de percursos diretos de sucesso dos alunos do resto do país” (a nota técnica está na infoescolas.pt). Passou-se a medir o progresso obtido em cada escola, por cada aluno, comparando o que é comparável: passa a contar o nível de partida e o nível de chegada dos alunos com o mesmo perfil (selecionar alunos ou retê-los para não irem a exame é uma prática penalizada pelo indicador). É bom registar que o Secretário de Estado da Educação, João Costa, ao contrário do seu Ministro, tem valorizado publicamente este indicador.

O algoritmo precisa de evoluir como medida plurianual, devido às dinâmicas que a sociedade influi nas diferentes gerações escolares, mas revela já dados interessantes. Se não lhe dão um sentido de pormenor, que sirva para aprendermos com os ‘outliers’: há escolas com contratos de associação, inseridas em meios desfavoráveis, que fazem um excelente serviço público de forma continuada, como é o caso do Colégio de São Miguel (Ourém) – 1ª do ranking de sucesso (9º em 2016); há escolas como a Secundária de Arga e Lima (Viana do Castelo), onde 44% dos seus alunos beneficiam do apoio da ação social escolar e é 319ª no ranking dos exames, mas 2ª no sucesso (4º em 2016); há escolas no top 10 do sucesso como as Secundárias de Porto de Mós, Ponte da Barca, Coelho e Castro (Santa Maria da Feira) e da Guia (Pombal); há escolas onde as famílias pagam integralmente os estudos, como no Colégio da Rainha Santa Isabel (Coimbra), em que os resultados deste indicador são também de sucesso (4º em 2017 e 3º em 2016); há escolas a contrariar o destino da envolvente, como a Secundária de Arganil (16º no sucesso); há escolas separadas por uma rua, como a Secundária e o Colégio da Trofa, com 1/3 dos seus alunos apoiados pela ASE, os pais com habilitações inferiores ao 9º ano e com desempenhos de topo; e há escolas que, aparentemente, não exercem influência ou não promovem o sucesso dos alunos. Mais do que uma indicação, estes dados mostram que a dinâmica intramuros é determinante no desenvolvimento das aprendizagens.

E como publicitaram esta nova estatística? Dizendo que, ao contrário do ranking dos exames, não diminui a Escola Pública. Mas será este o foco pretendido, ou que as escolas do povo, da burguesia, da cidade, da aldeia, dos privados e do Estado se transformem em escolas mais justas? Como apela François Dubet em Faits d´école, a escola que não apenas anula “a reprodução das desigualdades sociais e promove o verdadeiro mérito”, mas que garanta “o nível de ensino mais elevado ao maior número de alunos”. E, reparem, está subjacente a esta escola mais justa o que já fizemos na ‘igualdade de base’ (escolaridade obrigatória) e o que ainda falta fazer: a escola que equilibra desigualdades sociais quando, estrategicamente, promove o igual acesso a todas as oportunidades.

Este novo indicador pode ajudar a esbater algumas das assimetrias e mostra que o trabalho dos alunos, dos professores e a estratégia da escola ao longo de três anos contam. Não há outra interpretação! Ainda assim, desvalorizam-no, negam as evidências e insistem que é mais proveitoso intervir sobre a desigualdade social do que sobre a desigualdade escolar…

Diário As Beiras, 20180221

Palavra dada, palavra honrada?

Paulo Simões Lopes

“O governo, pela mão de 4 ministros, assinou em julho de 2016, um contrato com as Instituições de Ensino Superior (IES) prometendo um financiamento estável na legislatura. Afiançava-se que os orçamentos não diminuiriam e as IES seriam compensadas das alterações decorrentes dos aumentos salariais na função pública. Um acordo vantajoso para as IES que passavam a saber antecipadamente a sua parte no Orçamento de Estado (OE). Vantajoso para o governo que deixava de ter solicitações de reforços extraordinários de algumas instituições.

Em 2017, o governo pediu às IES que suportassem os aumentos salariais com o compromisso de que seriam compensadas. Tudo previsto e concordante com o acordo de legislatura! Depois de vários episódios menos felizes, em que o primeiro-ministro, o ministro das finanças e o do ensino superior se contradisseram, as IES souberam que lhes era negado o reforço integral das verbas correspondentes aos ditos aumentos salariais. Mais, que essa recusa era suportada no argumento de que algumas IES apresentam saldos “generosos” […]”

artigo completo

O governo, pela mão de 4 ministros, assinou em julho de 2016, um contrato com as Instituições de Ensino Superior (IES) prometendo um financiamento estável na legislatura. Afiançava-se que os orçamentos não diminuiriam e as IES seriam compensadas das alterações decorrentes dos aumentos salariais na função pública. Um acordo vantajoso para as IES que passavam a saber antecipadamente a sua parte no Orçamento de Estado (OE). Vantajoso para o governo que deixava de ter solicitações de reforços extraordinários de algumas instituições.

Em 2017, o governo pediu às IES que suportassem os aumentos salariais com o compromisso de que seriam compensadas. Tudo previsto e concordante com o acordo de legislatura! Depois de vários episódios menos felizes, em que o primeiro-ministro, o ministro das finanças e o do ensino superior se contradisseram, as IES souberam que lhes era negado o reforço integral das verbas correspondentes aos ditos aumentos salariais. Mais, que essa recusa era suportada no argumento de que algumas IES apresentam saldos “generosos”.

A fórmula de financiamento das IES é baseada na capitação (fatores de custo multiplicados por alunos). Infelizmente tal foi idealizado para sistemas orçamentais e demográficos em expansão e colapsou com a crise das finanças públicas e com a retração do número de alunos no sistema. A opção foi a de manter o status quo da rede de ensino, mas como os ajustamentos à fórmula não garantiam um equilíbrio no financiamento, optou-se pelo fator histórico acrescentado das alterações decorrentes dos contratos de legislatura. Pela explicação do ministro, poderíamos concluir que este “fator” estará a sobrefinanciar as IES. Fazendo um exercício primário e relacionando a verba no OE de 2018 (1.083M€) com o número de alunos inscritos (303.000), chegamos a um custo médio de 3.727€ por aluno. Basta comparar este custo com a média da OCDE para ver o milagre que estamos a fazer nos rankings de resultados. Dirão: “Mas as IES não se financiam só com OE!”. Claro que não, o OE não chega sequer para suportar a despesa com pessoal, quanto mais a sua complexa atividade, para não falar do vasto património e oferta cultural que disponibilizam à comunidade.

Que me recorde, as IES sempre estiveram em “stress” orçamental, embora a situação se tenha agravado a partir de 2006, quando o financiamento público começou a diminuir drasticamente e tiveram de procurar outras fontes de financiamento para pagar, por exemplo, os aumentos nas contribuições para a Caixa Geral de Aposentações. A par, fizeram ajustamentos notáveis às condicionantes externas e a sua gestão passou, em muitos casos, a beber da nova abordagem organizacional de dinheiros públicos (New Public Management), com o foco no Value for Money (a despesa pública deve devolver o maior valor possível à sociedade). Todo este esforço hercúleo permitiu, em alguns casos, ganhos de produtividade que se traduziram em “aforro”. No entanto, as IES estão obrigadas a apresentar orçamentos que respeitem a regra do equilíbrio orçamental (o orçamento “é elaborado, aprovado e executado por forma a apresentar saldo global nulo ou positivo”). Mas, a menos que se opte por esbanjar recursos em dezembro, é quase impossível concretizar um saldo global nulo num orçamento que, em muitos casos, se desmultiplica por milhares de outros. Notemos que estes saldos estão na sua maior parte consignados e a parte remanescente é utilizada como “reserva” que acode, como vimos, ao deficiente e inconstante financiamento do estado; complementa a atualização das propinas (entretanto congeladas); é parceira no cofinanciamento de projetos que nos valorizam nacionalmente e projetam globalmente; suporta fundos de investimento de apoio à comunidade estudantil; valoriza o património secular. Em suma, as IES recusaram dançar em arraiais despesistas, acompanharam o enorme esforço do país na coesão orçamental e honram a autonomia conferida pelo seu Regime Jurídico, sem deixarem beliscar a sua missão.

Em 2018, são acusadas de má gestão, porque, reparem, ou pouparam na despesa ou diversificaram (aumentaram) a sua receita. Os Reitores e Presidentes das IES não deixam de corresponder aos desafios lançados pelos orçamentos reprimidos, sem levantarem a voz, sem se queixarem que o fazem com um salário muito menor que o de um fotógrafo do presidente da Câmara de Lisboa. Outros titulares de cargos de gestão, como os diretores das Faculdades, também não reclamam um maior suplemento salarial (menos de 80% do rendimento mínimo garantido) quando dirigem centenas de colaboradores e milhares de alunos. Ouvimo-los a reclamar a palavra dada, a favor da transparência e contra a arbitrariedade com que o poder desce à província para distribuir uma solidariedade enternecedora pelos que, abandonados ao seu destino, não têm como sobreviver pelos seus próprios meios.

Diário As Beiras, 20180207

Obrigado

Paulo Simões Lopes

“O “Dia Internacional do Obrigado” nasceu nas redes sociais e é por lá que é comemorado, no dia 11 de janeiro. Serve para lembrar as vezes que nos esquecemos de agradecer, para desculpar a fraca memória dos ingratos, e, mais que tudo, para avaliarmos a nossa conduta diária: Será que estamos a agradecer, a sorrir, a proporcionar a alegria suficiente a quem nos faz bem? […]”

artigo completo

O “Dia Internacional do Obrigado” nasceu nas redes sociais e é por lá que é comemorado, no dia 11 de janeiro. Serve para lembrar as vezes que nos esquecemos de agradecer, para desculpar a fraca memória dos ingratos, e, mais que tudo, para avaliarmos a nossa conduta diária: Será que estamos a agradecer, a sorrir, a proporcionar a alegria suficiente a quem nos faz bem?

Quem melhor explicou a gratidão gravada no idioma, foi Jean Lauand, em 1998, numa conferência na Universitat Autònoma de Barcelona. Lauand percorreu uma das principais obras filosóficas da escolástica, a Summa Theologica de S. Tomás de Aquino, batizada por papa Pio XI de “o céu visto da terra”, para encaixar em cada um dos seus níveis de gratidão os sinónimos de reconhecimento de alguns idiomas: – O primeiro nível, o mais superficial, de natureza intelectual, corresponde ao reconhecimento (ut recognoscat) do benefício recebido. O inglês e o alemão enquadram-se neste patamar. Thank (agradecer) e to think (pensar) são na sua origem a mesma palavra, da mesma forma que zu danken (agradecer) tem a sua origem em zu denken (pensar). Faz sentido: só é agradecido quem pensa no que recebe. Aliás, quando isso não acontece, surge o desabafo, “mas que falta de consideração” (que falta de (re)conhecimento do beneficio); – No nível intermédio, o de louvar e de dar graças (ut gratias agat), temos o árabe (Shukran, shukran jazylan, um agradecimento é um louvor ao benfeitor) e a formulação latina de gratidão, gratias ago (obter graça, cair em graça, fazer graças) e gratias agere (de louvor ou dever de louvar), que aparece por exemplo no italiano, maltês, castelhano, catalão e francês (grazie, grazzi, gracias, gràcies e merci / mercê); – No nível mais profundo, temos o vínculo (ob-ligatus), a obrigação, o dever de retribuir. É aqui que se situa o “obrigado” e o “arigatô”, embora esta última remeta para significados primitivos como “a existência é difícil”, “é difícil viver”, “raridade”, porque de facto se fica no dever de retribuir um favor imerecido e, portanto, impossível de cumprir.

A palavra obrigado é, por isso, uma palavra “petalosa”. Tal como a corola, na sua epopeia de sobrevivência, assume a função de atrair os polinizadores, cada um dos sentidos desta palavra, em complementaridade, assume a função de comprometer o agraciado: uma pensa, outra reconhece, uma outra louva, outra dá graças e outra agradece. Cada uma das pétalas, cada um dos sentidos, com meridiana clareza, seduz e hipnotiza, de modo a ficarmos atraídos e obrigados numa consciência contraditória. Porquê? Ao selarmos o reconhecimento, ficamos eternamente obrigados a retribuir uma dívida impagável, e eles, amigos ou simples personagens de encontros furtuitos, silenciam-se diante do favor imerecido que nos fazem, sem cobrarem, sem chantagearem, sem se vingarem, pois aos que nada esperam “Tudo que vem é grato”.

Neste diálogo e em plena consciência, o difícil é mantermos o equilíbrio. É difícil sermos gratos sem ficarmos paralisados pelo que conquistamos ou pelo que nos é oferecido. Talvez o motor da conquista seja precisamente este, o de estarmos sempre em dívida relativa para com os generosos e em dívida absoluta para com este oceano de vida que dá a vida, a começar pelas combinações únicas de octilhões de átomos inconstantes que, sem sabermos muito bem porquê, um dia decidiram juntar esforços para, sem queixume nem reconhecimento, se dedicarem diariamente a manter-nos vivos. Na verdade, quando nos julgamos doadores, somos simples e humildes testemunhas, pelo que o melhor é passarmos a retribuir com um simples, longo e silencioso sorriso.

Diário As Beiras, 20180124

O estado na educação

Paulo Simões Lopes

“O Conselho Nacional de Educação apresentou no passado mês, mais um Relatório, desta vez sobre o Estado da Educação 2016. Um ponto que chamou a atenção da opinião pública foi o facto da descida da taxa de retenção e desistência, 14%, continuar acima da média dos países da UE28 (11%). Não podemos descurar o enorme esforço feito na área e o surpreendente resultado (em 1992, esta taxa rondava os 50%) mas é óbvio que ainda há um longo caminho a percorrer se compararmos com os 2,8% na Croácia. […]”

Diário As Beiras, 20180110

artigo completo

O Conselho Nacional de Educação apresentou no passado mês, mais um Relatório, desta vez sobre o Estado da Educação 2016. Um ponto que chamou a atenção da opinião pública foi o facto da descida da taxa de retenção e desistência, 14%, continuar acima da média dos países da UE28 (11%). Não podemos descurar o enorme esforço feito na área e o surpreendente resultado (em 1992, esta taxa rondava os 50%) mas é óbvio que ainda há um longo caminho a percorrer se compararmos com os 2,8% na Croácia.

Também devido a este indicador, a presidente do CNE criticou a cultura de retenção ainda predominante em algumas das escolas, muitas vezes funcionando como um acelerador de uma espiral invertida, provocando a estigmatização e potenciando ainda mais a retenção. Como assinalou no Relatório, nos desafios a enfrentar: “A prevalência excessiva da metodologia expositiva na sala de aula será também um aspeto a ter em conta entre os fatores de explicação da elevada taxa de insucesso escolar em Portugal”.

Sobre esta questão, quando interpelado sobre a recomendação do Relatório, o Ministro da Educação respondeu que esses dados diriam respeito ao ano letivo 2015-2016, cujo início “foi ainda da responsabilidade do anterior Governo”, tendo ainda declarado que “tivemos oportunidade de, sabendo nós como o estado da educação se apresentava nesse ano letivo, poder desenvolver novas políticas públicas para dar resposta” ao que o ministro classificou como “estaticidade das salas de aula”.

Ora, a questão da “metodologia expositiva”, apesar de constar em 3 páginas do Estado da Educação 2016, refere-se a um estudo de 2012, pelo que seria honesto se tivesse remetido a responsabilidade para os que governaram até 2012. Mas, se não leu o relatório, não o poderia ter feito. E se as respostas para a “estaticidade das salas de aula” são a “flexibilização e a autonomia curricular”, isso não implica que o ensino passe a ser menos expositivo. Para o ser, terá de mudar o atual paradigma educacional de modo a despertar a curiosidade do aluno ao ponto de lhe possibilitar a resolução de problemas por diferentes caminhos (aprendizagem autónoma), como faz a metodologia de aprendizagens baseadas em problemas (ABP ou Inquiry-Based Learning). “Infelizmente”, isso obrigaria alunos a serem construtores do conhecimento e docentes a serem facilitadores e não transmissores desse conhecimento. Da mesma forma que não entendo que as aulas dadas (método expositivo), tenham de se sobrepor às construídas (método construtivista), também não percebo porque é que a aquisição de conhecimento tem que se sobrepor ao desenvolvimento de competências.

Mais preocupante, foi o ministro ter sugerido que desconhece os dados referidos no Relatório sobre a “metodologia expositiva”, apesar de publicitados pelo projeto de investigação aQeduto, baseado no TALIS2012, um inquérito da OCDE sobre Ensino e Aprendizagem (Teacher and Learning International Survey), que inclui a visão dos docentes, tendo merecido em 2016, o título curioso do DN de “Envelhecidos e desiludidos”.

O estudo “Q10” do aQeduto, alerta para problemas raramente discutidos, mas importantes no edifício escolar, como o facto da indisciplina em sala de aula, em Portugal, aumentar com a idade dos professores, apesar de sabermos que a experiência dos docentes contribui para os índices de disciplina. Esta é uma questão nuclear a que urge socorrer, para a qual não basta a retórica nem a utilização populista do chavão da “defesa da escola pública”. Não tenhamos dúvidas, são os docentes que estão a contrariar o desmoronamento do edifício escolar, com custos pessoais enormes, ademais associados à Síndrome de Burnout, que já afeta cerca de um terço dos docentes do ensino pré-universitário, conforme inquérito do ISPA apresentado em fevereiro de 2016, pela FENPROF, numa conferência na Assembleia da República.

Mas será que é este stress ou burnout que está a alastrar e a condicionar a ação governativa, impedindo-a de melhorar o Estado da Educação? Por estas e por outras declarações comuns à classe política, diria que é a “Síndrome de Retórica”, replicada como as Matrioskas, que está a dominar a ação do Estado na Educação.

Diário As Beiras, 20180110

O tempo que são dois

Paulo Simões Lopes

“O tempo implica passado (memória), presente (inspiração) e futuro (espera). O tempo é fenómeno, é forma transcendental, é matéria de arte e é inerente à condição humana. É teológico, histórico ou físico. É também Khrónos e Kairós, duas dimensões gregas para o tempo: a primeira do tempo medido, linear, metódico e igual para todos; a segunda do tempo subjetivo (às vezes passa a correr, outras demora uma eternidade) […]”

artigo completo

O tempo implica passado (memória), presente (inspiração) e futuro (espera). O tempo é fenómeno, é forma transcendental, é matéria de arte e é inerente à condição humana. É teológico, histórico ou físico. É também Khrónos e Kairós, duas dimensões gregas para o tempo: a primeira do tempo medido, linear, metódico e igual para todos; a segunda do tempo subjetivo (às vezes passa a correr, outras demora uma eternidade).

Falamos de Khrónos quando observamos que o início do tempo, para os hebreus, começou na data da criação do mundo (3.761 “a.C”). Para os gregos, nas primeiras olimpíadas (776 “a.C”). Para os romanos, na fundação da cidade de Roma (753 “a.C”). Para os muçulmanos a partir da hégira, a fuga do profeta Maomé para a cidade de Medina (622 “d.C”). Quatro “tempos” reportados à era cristã, todos Khrónos e todos relativos, inclusive o nosso, porque se o monge Dionysius Exiguus se enganou no cálculo do ano de nascimento de Cristo, falar em “a.C” é uma discrepância temporal. Também é Khrónos quando fracionamos o tempo. Contamos em anos, meses, dias, até ao absurdo do googol (centésima potência de 10), um número imensamente grande, se considerarmos que só existem 6 x 1 000 000 000 000 000 000 000 000 000 gotas de água na terra. É um número que não serve praticamente para nada, digo eu, que não seja para envergonhar o “ego” da minha calculadora.

Já Kairós exige sabedoria para não desperdiçarmos a oportunidade. Quando estamos apaixonados pelo que fazemos ou por quem nos acompanha; quando alimentamos a nossa alma; quando nos deixamos embalar ao som de uma música esquecendo o tempo; quando estamos ansiosos e o tempo parece uma eternidade. Kairós é o tempo de Deus (“um dia para o Senhor é como mil anos, e mil anos, como um só dia”) e, neste espaço há sempre dois tempos (“Para tudo há um momento e um tempo para cada coisa que se deseja debaixo do céu” –, Ecl 3, nos Livros Sapienciais): tempo para plantar e tempo para colher; tempo para chorar e para rir; para juntar e para espalhar; afastar e abraçar; perder e procurar; armazenar e distribuir; tempo para guerra e tempo para paz.

O Khrónos é o “tempo dos homens”, condiciona-nos, persegue-nos nos relógios das praças públicas, nas plataformas ferroviárias, nos telefones, nos pulsos. Sempre presente, para não haver atrasos. Mas, parafraseando G. Carlin no Paradoxo do tempo: Multiplicamos os nossos bens, mas reduzimos os nossos valores; Falamos de mais, amamos raramente, odiamos frequentemente; Aprendemos a sobreviver, mas não a viver; Adicionamos anos à nossa vida e não vida aos nossos anos. No final, ficamos com uma vaga noção de tudo, e um conhecimento de nada.

O Khrónos está definido (mais um ano chega ao fim, mais outro que começa), mas o Kairós, é por nós definido. Em sossego ou agitação, com romantismo ou com realismo, a pensar com a cabeça ou com a eternidade no coração, somo nós que escolhemos entre o tempo para estar ou o tempo para amar, a lembrar o significado “carpe diem”, perpetuado pelos Romanos através da Ode a Leucónoe, de Horácio (65 a.C – 8.C), “Dum loquimur, fugerit invida aetas: carpe diem, quam minimum credula postero.”, traduzida por David Mourão-Ferreira para,

“De inveja o tempo voa enquanto nós falamos:

trata pois de colher o dia, o dia de hoje,

que nunca o de amanhã merece confiança.”

Diário As Beiras, 20171227

Conto(s) de Natal

Paulo Simões Lopes

“-Fora isto há muito. Sim, há tanto, que já ninguém sabia se era verdade: embora como verdade pura tivesse vindo contado de pais a filhos, de avós a netos [1]. Não nos tinham explicado suficientemente que o louro Menino Jesus que nos sorria no seu bercinho, tão descuidado, tão alegre, no meio do esplendor dos círios e do perfume das violetas, era o mesmo Deus descarnado e lívido, coroado de espinhos, alanceado no coração, pregado na cruz e exposto no altar [2] (Vejo-O morrer depois, ó pecadores) [3]- […]”

artigo completo

-Fora isto há muito. Sim, há tanto, que já ninguém sabia se era verdade: embora como verdade pura tivesse vindo contado de pais a filhos, de avós a netos [1]. Não nos tinham explicado suficientemente que o louro Menino Jesus que nos sorria no seu bercinho, tão descuidado, tão alegre, no meio do esplendor dos círios e do perfume das violetas, era o mesmo Deus descarnado e lívido, coroado de espinhos, alanceado no coração, pregado na cruz e exposto no altar [2] (Vejo-O morrer depois, ó pecadores) [3]-

Nem um luzeiro de estrela trespassa agora aquele negrume denso que enche os espaços e por onde o vento anda à solta, varejando as carvalheiras das bouças e assobiando nas agulhas dos pinhais como uma orquestra de flautas [4]. A vida parou. As nuvens andam a esta hora a rastro pelas encostas pedregosas dos montes. Não se ouve um grito. Tudo na natureza se concentra e sonha [5]. ‘O ar estava tépido, embalsamado [6]. Há no ar um não-sei-quê de festivo [7] – é como se a Terra inteira estivesse à espreita de ouvir tocar o sino para a missa [8]-. Uma noite tão escura que parecia impossível que dela pudesse nascer o Sol[…].

O frio está lá fora [9]. Há a neve que faz mal [10]. Entrou no alpendre, encostou o pau à parede, arreou o alforge, sacudiu-se, e só então reparou que a porta da capela estava apenas encostada… Num começo de angústia, porque o ar da montanha tolhia e começava a escurecer, lembrou-se de ir à sacristia ver se encontrava um bocado de papel. Descobriu, realmente, um jornal a forrar um gavetão, e já mais sossegado, e também agradecido ao céu por aquela ajuda, olhou o altar. Quase invisível na penumbra, com o divino filho ao colo, a Mãe de Deus parecia sorrir-lhe. Boas festas! – desejou-lhe então, a sorrir também. Contente daquela palavra que lhe saíra da boca sem saber como, voltou-se e deu com o andor da procissão arrumado a um canto. E teve outra ideia. Era um abuso, evidentemente, mas paciência. Lá morrer de frio, isso vírgula! Na altura da romaria que arranjassem um novo[…]. Tirou a navalha do bolso, cortou um pedaço de broa e uma fatia de febra e sentou-se. Mas antes da primeira bocada a alma deu-lhe um rebate e, por descargo de consciência, ergueu-se e chegou-se à entrada da capela. O clarão do lume batia em cheio na talha dourada e enchia depois a casa toda. É servida?

A Santa pareceu sorrir-lhe outra vez, e o menino também[…], diante daquele acolhimento cada vez mais cordial, não esteve com meias medidas: entrou, dirigiu-se ao altar, pegou na imagem e trouxe-a para junto da fogueira.

— Consoamos aqui os três – disse, com a pureza e a ironia de um patriarca.

— A Senhora faz de quem é; o pequeno a mesma coisa; e eu, embora indigno, faço de S. José [11]. Numa pedra, que ali fazia de banco [12], junto às brasas [13], reviu a ideia de há muito que o andava a desassossegar [14], a alegria da aldeia, os bailes à noite em volta da fogueira, a ida à fonte pela manhã, o sino a tocar à missa, e ele a pensar que, quando fosse crescido, havia de ter uma namorada[…], a quem cantasse umas quadras falando de estrelas e de flores [15]. Como se fosse ontem, e vão passadas umas poucas de dúzias de anos [16] – um homem tem o coração cheio de epitáfios e vê outras pessoas felizes [17]- sentiu duas longas lágrimas a molharem-lhe o rosto [18] e se deixaram ficar ao lume [19], até que uma luz brilhante e dourada lhe abria a porta de um novo Mundo [20]. Voltou-se e só então ouviu, por sob o estrondo das vagas invisíveis, os passos arquejantes que haviam precedido o chamamento [21] – Oh! Era por isso que eu tanto falava às aves como aos homens, às fragas como aos deuses [22]. Acordou os ecos da serrania, e arrancou os vales desta espécie de letargo: Nasceu o Filho de Deus [vozeou]. Todos os habitantes da aldeia se puseram em movimento. Por toda a parte começaram a aparecer e desaparecer luzinhas, e o ruído de fechar e abrir portas fez-se ouvir em todas as habitações [23].

Nasceu o vosso Rabi [24]. E como pode aquele que viu estas coisas não te ver? E como poderei suportar o que vi se não te vir [25]?

 

25 excertos, ipsis verbis, encadeados e copiados de:

José Régio – Conto de Natal, 1;

Ramalho Ortigão – O Natal Minhoto, 2

Bocage – O Nascimento de Cristo, 3;

Carlos M. Dias – A Prenda de Natal, 4;

Raul Brandão – Natal dos Pobres,5;

Abel Botelho – A Consoada, 6;

José R. Miguéis – O Natal do Dr. Crosby, 7;

Fialho de Almeida – Conto de Natal, 8;

José Saramago – História de um muro branco e de uma neve preta, 9;

Fernando Pessoa – Dia de Natal, 10;

Miguel Torga – Natal, 11;

Urbano T. Rodrigues – A verdade?, 12;

Afonso Duarte – Natal em Família, 13;

Alexandre O’Neill – … com vista ao próximo Natal, 14;

João da Câmara – O Presépio, 15;

Brito Camacho – As Janeiras, 16;

Altino Tojal – Noite de Consoada, 17;

Júlio Brandão – Lenda de Natal, 18;

Aquilino Ribeiro – Sonho de uma noite de Natal, 19;

M. Judite de Carvalho – Conto de Natal, 20;

Jorge de Sena – A Noite que Fora de Natal, 21;

Pina de Morais – O Pai Natal, 22;

José de Andrade Ferreira – A Noite de Natal, 23;

Gomes Leal – Os pastores, 24;

Sophia de Mello Breyner A. – Os Três Reis Do Oriente, 25

Diário As Beiras, 20171213

Que fazer ao mérito?

Paulo Simões Lopes

” A nossa cultura e os nossos valores são resultado de uma mescla civilizacional com fortes influencias dos povos que passaram pela península e das nossas relações coloniais. Por vezes “armazenámos” a memória coletiva, outras vezes, meros coadores, desprezámos o saber. Muito do que não nos chegou, perdeu-se no processo de sistematização, transmissão e até de manipulação, escondendo assim a iniciativa, a criatividade e, por fim, o mérito. Infelizmente, este desígnio estende-se com raízes tão fortes e profundas à economia da aprendizagem (learning economy), que muitas das nossas organizações ostentam a cartilha do desprezo pelo reconhecimento nas suas decisões […]”

artigo completo

A nossa cultura e os nossos valores são resultado de uma mescla civilizacional com fortes influencias dos povos que passaram pela península e das nossas relações coloniais. Por vezes “armazenámos” a memória coletiva, outras vezes, meros coadores, desprezámos o saber. Muito do que não nos chegou, perdeu-se no processo de sistematização, transmissão e até de manipulação, escondendo assim a iniciativa, a criatividade e, por fim, o mérito. Infelizmente, este desígnio estende-se com raízes tão fortes e profundas à economia da aprendizagem (learning economy), que muitas das nossas organizações ostentam a cartilha do desprezo pelo reconhecimento nas suas decisões.

Esta é uma das conclusões do estudo da FFMS, “Valores, Qualidade Institucional e Desenvolvimento em Portugal”. Tintim por tintim, o trabalho competente tem pouca relevância na valorização profissional e as “preferências e conexões pessoais têm um papel fundamental em várias situações”. Com pormenor e sem omitirem nada, provam que a máquina de injustiça social é uma imagem de marca nas relações de proteção das “famílias”, apesar do sistema meritocrático ter formalização jurídica, pelo menos, desde a nossa Constituição de 1822. Em que estamos então a falhar? Será na educação? Estaremos a adaptá-la ao status-quo? Apesar das reconhecidas lacunas na educação formal, o problema estará na função que lhe queremos dar, no eterno destino entre a visão humanista e a preparação para a competição no mercado de trabalho, entre “pessoas capazes” e “profissionais competentes”.

Uma das organizações mais conotada com o reconhecimento pelos avanços científicos é a Fundação Nobel. Que o diga a família Curie que, entre os seus 5 prémios, conta o primeiro Nobel atribuído a uma mulher, a única a recebê-lo por duas vezes. A evolução da ciência levou a que hoje saibamos muito do que ela desconhecia, como o ter transportado no seu bolso, com consequências trágicas, os testes de rádio. Também aprendemos que metade dos pacientes que recebam doses entre 0,5 e 1 Gy apresentam vómitos e diarreia, que isso é raro abaixo de 0,2 Gy, que 50 Gy danificam o tecido nervoso central ao ponto de poder causar a morte do indivíduo e que exposições nas gónadas acima dos 3,5 Gy provoca esterilidade permanente.

A propósito, recentemente foi lançado em livro um estudo na área dos exames radiológicos que relacionou os parâmetros de exposição, a dose nos doentes e a imagem obtida, tendo concluído que existia uma “grande heterogeneidade na forma de efetuar os procedimentos radiológicos”. Mais ainda, propõe um modelo otimizado, com novos parâmetros de exposição em que foi reduzida significativamente a dose nos doentes (em média 50%), tudo sem comprometer a qualidade da imagem radiológica. Trata-se de uma grande investigação multidisciplinar, com dados antropométricos de 9.935 crianças e com extraordinários resultados sobre a exposição à radiação ionizante nas crianças ao nível da radiologia convencional pediátrica. Expõe também resultados ao nível dos efeitos biológicos da radiação e é um exemplo da evolução do legado dos pioneiros da radiobiologia, por exemplo, de Harold Gray (que emprestou o nome à unidade de medida da dose absorvida, Gy). Basta relembrar os efeitos secundários da radiação ionizante nas crianças para que a comunidade científica não permita que o mérito desta “Nobre” investigação seja fossilizada.

Ainda a propósito de uma leitura às “Farpas” (tão atual esta caricatura de 1870 à sociedade de então!) de Ramalho Ortigão (e Eça de Queiroz), porque “Ninguem é grande nem pequeno n’este mundo pela vida que leva, pomposa ou obscura, solta ou aperreada. A categoria em que temos de classificar a importancia dos homens deduz-se do valor dos atos que elles praticam, das ideias que diffundem e dos sentimentos que communicam aos seus similhantes.”

Diário As Beiras, 20171130

Arq. Vasco Cunha, “face-à-vista”

Paulo Simões Lopes

“‘Apanho a história a meio, já em 1956, quando a Câmara de Matosinhos encomendou o projeto da Quinta da Conceição a Fernando Távora, para relevar os seis jovens, aprendizes do seu atelier, que na altura colaboraram na reconstrução dos elementos pré-existentes e na sua transição para o presente sem os desenquadrar do passado: Alberto Neves, Álvaro Siza, José Pacheco, Francisco Figueiredo e Vasco Cunha. Foi aqui, ainda como aluno da Escola Superior de Belas Artes do Porto, que Vasco Cunha colaborou no desenho do “Pavilhão de Ténis”, mais tarde reconhecido por Fernando Távora, como uma das suas obras mais emblemáticas. Quando o Professor fechou a sua “escola”, Vasco Cunha foi estagiar com Arménio Losa, Cassiano Barbosa e Octávio Lixa Filgueiras. Foi com a planilha destes Mestres que regressou a Coimbra, onde executou, em quatro décadas, cerca de 900 planos e projetos com a sua própria linguagem de arquitetura. Um desses trabalhos foi o da minha primeira habitação! Um edifício maioritariamente revestido com alvenaria de tijolo face-à-vista, com muitos pormenores ainda hoje inimitáveis e um mobiliário de design ímpar, intemporal, do qual ainda guardo algumas peças.   […]”

artigo completo

Apanho a história a meio, já em 1956, quando a Câmara de Matosinhos encomendou o projeto da Quinta da Conceição a Fernando Távora, para relevar os seis jovens, aprendizes do seu atelier, que na altura colaboraram na reconstrução dos elementos pré-existentes e na sua transição para o presente sem os desenquadrar do passado: Alberto Neves, Álvaro Siza, José Pacheco, Francisco Figueiredo e Vasco Cunha. Foi aqui, ainda como aluno da Escola Superior de Belas Artes do Porto, que Vasco Cunha colaborou no desenho do “Pavilhão de Ténis”, mais tarde reconhecido por Fernando Távora, como uma das suas obras mais emblemáticas. Quando o Professor fechou a sua “escola”, Vasco Cunha foi estagiar com Arménio Losa, Cassiano Barbosa e Octávio Lixa Filgueiras. Foi com a planilha destes Mestres que regressou a Coimbra, onde executou, em quatro décadas, cerca de 900 planos e projetos com a sua própria linguagem de arquitetura. Um desses trabalhos foi o da minha primeira habitação! Um edifício maioritariamente revestido com alvenaria de tijolo face-à-vista, com muitos pormenores ainda hoje inimitáveis e um mobiliário de design ímpar, intemporal, do qual ainda guardo algumas peças.

Apesar de não ser um entendido na matéria, reconheço-lhe a notável arte em explorar os 5 pontos corbusianos da arquitetura, onde sobressai a ideia do “terraço jardim”, no rompimento com a arquitetura local e a tentativa de recuperar o solo ocupado pelo betão, transferindo-o para os andares superiores. O edifício gaveto que une as Ruas General Humberto Delgado e a dos Combatentes de Grande Guerra, é um desses exemplos. Não fosse a pressão dos promotores e, digo eu, ao invés das galerias sob a grelha de pilares do piso térreo, teríamos a encosta do Penedo da Saudade a entrar pelos pilotis de Corbusier e a sair nas artérias, num conceito de “cidade verde”, a valorizar o espaço entre as árvores como ensaiou mais tarde no Atrium Solum, com os pilotis a transporem o jardim para o piso superior e a ligaram o objeto arquitetónico ao solo de uso pedonal.

Em Coimbra é difícil evitar-se a sua obra: a da década de 80, sob a influência pós-moderna, a que se seguiu com a introdução da tecnologia e a quase sempre presente escola do Porto, da minha preferência, que expõe o tijolo, o betão, o ferro, a pedra e a madeira.

Para compreender as palavras que António Monteiro dedicou ao seu colega, Vasco Cunha (“exemplo de cidadão onde a honestidade, o bom senso e a solidariedade são uma “Marca” de vida”), é preciso “entrarmos” no Salão Nobre do Município, onde o NARC e a CMC homenagearam o Arquiteto que viveu para a cidade. O que escrevi até aqui é apenas introdução ao homem que, no meio da solenidade, a fazer-nos recordar Charles Dickens (“as coisas mais bonitas do mundo são as sombras”), trocou afetos e lágrimas com Adelina Maria Areosa de Almeida Carvalho (a quem eu carinhosamente apelido de “Simone de Oliveira”), na presença dos seus filhos, netos, familiares e amigos, enquanto cristalinamente recordava estórias de quando discutia a execução dos pormenores de obra. Num dos casos, com um metalúrgico, a quem tinha oferecido o projeto de habitação e a garantia do empréstimo para aquisição do imóvel. Entretanto, problemas de saúde deixaram a família entregue a ninguém, até ao dia em que mãe e filho vieram bater à sua porta. Não pediram dinheiro, só sustento, educação e formação para o jovem descendente do moldador de ferro. Este rapaz fez-se homem, vive em Angola e, assim que soube da homenagem, fez-se à estrada. Ainda sem dormir, ouviu da boca emocionada do Arquiteto o que um filho gostaria de ouvir de um pai. Por fim, o rapaz, hoje homem, em sinal de reconhecimento, levantou-se do meio dos convidados e cumprimentou o mestre. Estava feito o tributo que um Homem merece ter em vida.

O resto está nos manuais da faculdade, nas teses, nos arquivos, nas memórias, no espaço da cidade e na emoção partilhada pela família. Bem-haja, Arq. Vasco Jorge Antunes da Cunha.

Diário As Beiras, 20171115

Aos florestais portugueses…

Paulo Simões Lopes

“‘… à memória dos silvicultores que nos legaram nobre e honrado exemplo de amor e dedicação pela causa florestal” (António Arala Pinto).

Primeiro choveu fogo num cenário dantesco, depois o líquido que corre na veia dos deuses caiu sobre a terra. Ficou este queimado entranhado e o odor da terra molhada a alertar para a vida, como fez uma amiga ao escrever-me “Tinha e tenho uma ligação emocional muito forte ao pinhal de Leiria e às praias daquela zona. Passei por lá momentos muito felizes na minha infância e adolescência. Não consigo aceitar a destruição de património com vários séculos, que foi e precisa de continuar a ser uma garantia de sustentabilidade  […]”

artigo completo

à memória dos silvicultores que nos legaram nobre e honrado exemplo de amor e dedicação pela causa florestal” (António Arala Pinto).

Primeiro choveu fogo num cenário dantesco, depois o líquido que corre na veia dos deuses caiu sobre a terra. Ficou este queimado entranhado e o odor da terra molhada a alertar para a vida, como fez uma amiga ao escrever-me “Tinha e tenho uma ligação emocional muito forte ao pinhal de Leiria e às praias daquela zona. Passei por lá momentos muito felizes na minha infância e adolescência. Não consigo aceitar a destruição de património com vários séculos, que foi e precisa de continuar a ser uma garantia de sustentabilidade.”

O “pedaço de chão que veio do fundo do mar” foi dividido em 342 talhões, quase todos com 35 hectares, separados por caminhos, os aceiros, perpendiculares ao mar, e os arrifes, paralelos ao mar. A história aceitou que a origem do “Pinhal d`El-Rey” tivesse sido atribuída a D. Dinis, mas isso não passa de uma auréola histórica deixada pelos cronistas. Arala Pinto, em “O Pinhal do Rei – Subsídios”, explica-nos que só aprendemos a semear nas dunas fustigadas por fortes ventos no séc. XVIII e os achados de lenhite remetem a origem do Pinhal para antes da fundação da monarquia. Talvez D. Dinis se tenha interessado pelos campos do Ulmar (onde os Romanos terão valorizado os poderes da ulmária, dois mil anos antes de ser incorporada, através do ácido salicílico, na aspirina), numa visão pioneira do empreendimento marítimo que se avizinhava. E não era para menos, considerando que para a construção de um Galeão ou de um Bacalhoeiro de 1200 toneladas, era necessário o equivalente a 6.250 pinheiros bravos. Se pensarmos nos 130 navios da “Grande y Felicíssima Armada” de Filipe II, dá para calcular o número absurdo de árvores que a sustentou.

O Pinhal atravessou séculos, até que os Mestres da Floresta passaram a ser comandados por quem não percebe nada destes frágeis espaços de vida. Estava ditada a sentença a 5 milhões de pinheiros! Morrer de pé, num imenso braseiro com 9.000ha (4/5 do pinhal), perante uma mórbida audiência que ignora o que acontece quando se desiste da gestão de um ecossistema que demorou séculos a transformar as formações dunares. Seria de esperar aquele inferno, de onde nem as pobres rolas conseguiram encontrar a saída, apesar das chamadas de atenção dos ambientalistas, autarcas, bombeiros e sociedade civil. De todos menos do ICNF, que assegurou ao Ministro: “a gestão do Pinhal de Leiria era a adequada”. Como poderia ser com os atuais 18 trabalhadores quando outrora já teve centenas?

“Costumava pensar que a educação é prioritária porque é a educar que mudamos e esculpimos a sociedade e o mundo”, continuou a minha amiga, como que a responsabilizar uma educação pouco focada na cidadania. E tem razão! Os que acreditam que vai tudo naturalmente renascer das cinzas, devem ir à Serra da Boa Viagem ver a ação desastrosa dos poderes central e local. E não percam tempo em comprometer anteriores ministros, as florestas são símbolos de solidariedade entre gerações, são de cada um e de todos. Por isso a Isabel Maranha colocou neste jornal a questão sob outro prisma: “Que estado queremos?”. Se os nossos recursos não são elásticos, como vamos proteger os nossos filhos? Como aumentar a despesa com a Floresta (atualmente 1,6% do orçamento do estado)? Abdicamos da Segurança Social (agora com 31%)? Da Saúde (15%)? Ou ficamos pelos lamentos, acusações e azares de João Mortinheira, o vilão da tragicomédia “Romagem dos Agravados” de Gil Vicente: Que chove quando não quero | e faz hum sol das estrelas | quando chuva alguma espero.

Diário As Beiras, 20171101

Tenho em mim todos os sonhos do mundo

Paulo Simões Lopes

“‘Quem for eleito ficará com estas obrigações, ou com outras, desde que seja para recentrar o edifício escolar em quem precisa de aprender e não em quem já sabe. Desde que se obrigue a melhorar o estatuto do aluno sem o obrigar a ficar no seu espaço social de origem independentemente da sua vontade. Ficam com essa obrigação porque Deus só dá fardos a quem os pode carregar’

Começo este texto como acabei o último, porque, entretanto, a Fundação Manuel dos Santos promoveu o debate “De que escola precisamos?”, com David Justino, Maria Mota e Joaquim Sousa. Este é o professor que chegou em 2009, à EB123/PE-Curral das Freiras, e encontrou tudo no sitio certo para dar errado e, a propósito, a Fundação reeditou o artigo assinado por Márcio Berenguer,  “Uma escola onde cabem todos os sonhos”, que começa assim: “Quando cá cheguei, existia nestes miúdos a ideia de que o filho de um agricultor estava condenado a ser agricultor […] Vi ali um laboratório para aquilo que eu acredito que a escola dever ser: um lugar de igualdade e de oportunidades que permita projetar e elevar as pessoas […]”

artigo completo

“Quem for eleito ficará com estas obrigações, ou com outras, desde que seja para recentrar o edifício escolar em quem precisa de aprender e não em quem já sabe. Desde que se obrigue a melhorar o estatuto do aluno sem o obrigar a ficar no seu espaço social de origem independentemente da sua vontade. Ficam com essa obrigação porque Deus só dá fardos a quem os pode carregar.”

Começo este texto como acabei o último, porque, entretanto, a Fundação Manuel dos Santos promoveu o debate “De que escola precisamos?”, com David Justino, Maria Mota e Joaquim Sousa. Este é o professor que chegou em 2009, à EB123/PE-Curral das Freiras, e encontrou tudo no sitio certo para dar errado e, a propósito, a Fundação reeditou o artigo assinado por Márcio Berenguer, “Uma escola onde cabem todos os sonhos”, que começa assim: “Quando cá cheguei, existia nestes miúdos a ideia de que o filho de um agricultor estava condenado a ser agricultor […] Vi ali um laboratório para aquilo que eu acredito que a escola dever ser: um lugar de igualdade e de oportunidades que permita projetar e elevar as pessoas” (Público, março de 2016). Os maus resultados no primeiro ano traçaram o rumo: em vez do facilitismo, a exigência, apesar de 92% dos alunos beneficiarem de Ação Social Escolar e de não haver sustento no lugar, para além da produção hortícola, castanhas, cerejas ácidas e um presépio no natal. Se fosse um lugar fácil, os corsários franceses tinham perseguido até ao Curral as religiosas do Convento de Santa Clara. Mas, na avaliação externa, a escola saiu da posição 1207 e posicionou-se ao lado das melhores escolas do estado. Agora o professor já não pede, exige: “estes alunos têm sonhos, têm direito a ter todos os sonhos do mundo e a nós cabe ajudar a concretizá-los”. Berenguer, bem, relembra Álvaro de Campos: Não sou nada. | Nunca serei nada. | Não posso querer ser nada. | À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Apesar de, em janeiro, a maioria dos professores ainda estar a adaptar-se à rudez do meio (ou a tentar o destacamento para outra escola), é graças aos seus desempenhos que mais depende a realização destes sonhos, conforme aliás já concluiu, por exemplo, “Measuring the Impacts of Teachers I: Evaluating Bias in Teacher Value-added Estimates”. Acresce a matriz identitária da escola: uma política de maior responsabilidade e de menor tolerância; apoio aos alunos no horário letivo; inexistência de TPC; viagens motivacionais; horários alinhados com as passagens dos autocarros; métodos de ensino individuais; atividades extracurriculares que promovem a cidadania; um salão de jogos; uma sala de Informática, sempre aberta; um porto de abrigo, onde a comunidade se ancora todo o ano. Enfim, um “elevador social” que desamarra os miúdos do triste fado daquele navio.

Não lamento um centavo dos nossos impostos aplicados em projetos educativos de sucesso e, como utente, com a devida defesa da causa pública, pouco me importa que seja investido na propriedade privada ou na do estado. Este núcleo escolar/desportivo, que inclui uma piscina coberta e um pavilhão gimnodesportivo, prova que faz sentido uma distribuição equitativa dos recursos públicos e a sua ponderação numa análise custo-benefício. Em menos de uma década, Joaquim Sousa cumpriu o impensável com o desafio implícito na primeira página do seu Regulamento Interno: “Cada escola é/será aquilo que todos e cada um dos seus elementos forem capazes de construir, ou quiserem que ela seja.”. Digo eu, a pensar noutro heterónimo de Fernando Pessoa: “Serei o que quiser. Mas tenho que querer o que for. O êxito está em ter êxito, e não em ter condições de êxito. Condições de palácio tem qualquer terra larga, mas onde estará o palácio se não o fizerem ali?”

Diário As Beiras, 20171018

Entre uma coisa e a outra,

as minhas bases para um programa.

Paulo Simões Lopes

“Entre uma coisa e outra, as minhas bases para um programa, vêm a propósito do “Debate – A Educação”, organizado pela Direção e Associação de Pais da Escola Secundária José Falcão, para ouvir o que pensavam os candidatos aos órgãos autárquicos. Afinal, todos ex-alunos da casa, honraram o ditado e não fizeram milagres. Manifestaram elevado exercício de cidadania, alguma urbanidade e pouca atenção ao cartaz do debate. Valeu o propósito, obrigado Paulo Ferreira! Sem conhecer os vencedores de amanhã, escrevo propositadamente neste sábado. Assim não insulto o crocodilo antes de atravessar o rio e contribuo para o debate. Na autarquia, começar por instituir uma ação política fundamentada no planeamento prospetivo através da Carta Educativa do Município (que já não existe), do Projeto Educativo Concelhio (que tarda em existir), do Plano de Atividades (que nunca existiu) e da prestação de contas (que um dia existirá) […]”

artigo completo

“vêm a propósito do “Debate – A Educação”, organizado pela Direção e Associação de Pais da Escola Secundária José Falcão, para ouvir o que pensavam os candidatos aos órgãos autárquicos. Afinal, todos ex-alunos da casa, honraram o ditado e não fizeram milagres. Manifestaram elevado exercício de cidadania, alguma urbanidade e pouca atenção ao cartaz do debate. Valeu o propósito, obrigado Paulo Ferreira! Sem conhecer os vencedores de amanhã, escrevo propositadamente neste sábado. Assim não insulto o crocodilo antes de atravessar o rio e contribuo para o debate. Na autarquia, começar por instituir uma ação política fundamentada no planeamento prospetivo através da Carta Educativa do Município (que já não existe), do Projeto Educativo Concelhio (que tarda em existir), do Plano de Atividades (que nunca existiu) e da prestação de contas (que um dia existirá). E, entre outras:

1. Assumir a “descentralização em educação” na sua dimensão legal;

2. Criar um observatório que compare projetos educativos e apresente correções à ação política;

3. Complementar os recursos da tutela com meios locais adequados;

4. Nivelar a habitabilidade das escolas, introduzindo-lhes espaços verdes e um programa de escola inclusiva onde prevaleça a segurança e o civismo;

5. Ouvir as comunidades educativas e valorizar a sua participação democrática, através de um modelo de governação assente no Conselho Municipal de Educação;

6. Introduzir a meritocracia e elevar a classe docente para uma elite profissional que não é lhe atualmente reconhecida;

7. Incentivar a recuperação das aprendizagens com o reforço de meios e da promoção da mobilidade dos alunos, através de uma rede colaborativa que otimize a matriz identitária da escola e as características do aluno;

8. Promover a abertura da escola nas várias dimensões educativas, numa simbiose entre o respeito pela comunidade escolar e o reconhecimento do saber fora de muros;

9. Estabelecer uma escola com possibilidade efetiva de preencher o vazio forçado pela vida das famílias, onde os estudantes possam usufruir das suas brincadeiras e tempo livre;

Ao Estado, exigir o bom funcionamento da rede de ensino, a maximização e igualização dos recursos instalados, tendo presente que a oportunidade, conveniência, equidade, razoabilidade e justiça social se faz pela via fiscal.

À sociedade, reclamar empenho no desenvolvimento físico, intelectual, cívico e moral dos jovens. Uma sociedade local interveniente, responsável e colaborativa, capaz de chamar a si a maioria das “Atividades de Enriquecimento Curricular” que proliferam na nossa escola. À escola, pedir esforço no sucesso da aprendizagem do aluno e no seu desenvolvimento como ser social, tendo como adquirido que alunos diferentes, a progredir a ritmos diferentes, podem chegar à mesma meta de “aprender a aprender” e deixar para trás o “corpo de conhecimento”, sempre com as respostas certas para as perguntas adequadas.

Quem for eleito ficará com estas obrigações, ou com outras, desde que seja para recentrar o edifício escolar em quem precisa de aprender e não em quem já sabe. Desde que se obrigue a melhorar o estatuto do aluno sem o obrigar a ficar no seu espaço social de origem independentemente da sua vontade. Ficam com essa obrigação porque Deus só dá fardos a quem os pode carregar.

“Já com tanto falecer  | Me falece a confiança. | E de sua fé perder | Perdi a minha esperança.” Pêro de Andrade Caminha

Diário As Beiras, 20171004

O que nos leva a partir?

Paulo Simões Lopes

“O que nos leva a partir? “Então ignoravam que esta raça, depois de cinquenta anos de constitucionalismo, criada por esses saguões da Baixa, educada na piolhice dos liceus, roída de sífilis, apodrecida no bolor das secretarias, arejada apenas ao domingo pela poeira do Passeio, perdera o músculo como perdera o carácter, e era a mais fraca, a mais cobarde raça da Europa?… –  Isso são os lisboetas – disse Craft. –  Lisboa é Portugal – gritou o outro. – Fora de Lisboa não há nada. O país está todo entre a Arcada e S. Bento!… […]”

artigo completo

“Então ignoravam que esta raça, depois de cinquenta anos de constitucionalismo, criada por esses saguões da Baixa, educada na piolhice dos liceus, roída de sífilis, apodrecida no bolor das secretarias, arejada apenas ao domingo pela poeira do Passeio, perdera o músculo como perdera o carácter, e era a mais fraca, a mais cobarde raça da Europa?…

–  Isso são os lisboetas – disse Craft.

–  Lisboa é Portugal – gritou o outro. – Fora de Lisboa não há nada. O país está todo entre a Arcada e S. Bento!…”

Este excerto dos “episódios da vida romântica”, escrito por Eça para uma das três gerações da família Maia na segunda metade do século XIX, utiliza a centralidade de Lisboa para simbolizar o país e serve de introdução à (in)capacidade de Coimbra fixar a sua população, como aliás demonstra o INE, com uma perda de 13.797 residentes no Concelho entre 2001 e 2016.

De “dedo em riste”, responsabilizam o executivo camarário de contribuir, com a sua inoperância, para o decréscimo dos residentes em Coimbra, cuja capitalidade terciária já não fixa os seus e não atrai os de fora! Mas estará a cidade sozinha neste desígnio? Ao olharmos para os fluxos migratórios no país, sobressaem duas correntes: as grandes cidades, incluindo Lisboa e Porto estão a esvaziar-se para os concelhos limítrofes e o país está a convergir para a Área Metropolitana de Lisboa (com 18 concelhos). Já não descemos só os rios na direção do Mar, passámos a seguir o Tejo. É a razão de Eça: “Fora de Lisboa não há nada.”

Em 2016, dos 19 concelhos com mais residentes, só Braga, Guimarães e Coimbra se situavam fora da Área Metropolitana de Lisboa e do Porto e os concelhos que mais perderam residentes face a 2001, tinham sido Lisboa (58.594), Porto (47.664) e Coimbra (13.797). Quem ganhou? Cascais (38.628), Mafra (27.012) e Odivelas (21.196).

A província seca, a vida mirra e, numa espiral invertida, os responsáveis locais são causa e consequência da terra deserta. Alguns sentem-se impotentes para inverter este ciclo, mas muitos são só incompetentes. Falta-lhes a visão do crescimento inteligente, sustentado e inclusivo. Sequer conseguem replicar o sucesso de Braga e os instrumentos utilizados pelo município para a promoção da sua dinamização económica, preferem confinar-se ao alcatrão, conscientes que não atraem investimento, antes servem quem leva o sonho de uma vida melhor para outro lugar.

Exemplos não faltam! Assim como a maquilhagem dos índices de emprego não segura as pessoas onde não há trabalho, também publicitar um ensino público igualitário não fixa os alunos onde não há qualidade. Como a lógica da mobilidade dos alunos é similar à dos que procuram alterações aos seus padrões de cidadania, assistimos à pressão das famílias pela escolha da melhor escola, à falsificação dos documentos de matricula, às autoridades locais a empurrarem a solução para a tutela e ao Ministério a assobiar para o ar. Cumprem a missão constitucional de “Assegurar o ensino básico universal, obrigatório e gratuito” e, sob o pretexto de que o perfil multicultural das escolas enriquece quem as frequenta, ignoram as assimetrias do meio, como se a segregação residencial, social ou escolar não fossem o rastilho umas das outras.

Desresponsabilizam-se da especulação imobiliária que expulsa as famílias para uma casa na periferia. Da ausência de emprego com direitos e de serviços públicos de qualidade nas áreas suburbanas. Do vai-e-vem diário das famílias de/para a cidade (ou de vez, para Lisboa). Desresponsabilizam-se da atração, da qualidade e da sua sustentabilidade, quando são os grandes responsáveis por modificá-la.

Diário As Beiras, 20170920

Cindazunda

Paulo Simões Lopes

“Existe um consenso alargado de que a educação, a par da governação e as infraestruturas físicas, são os pilares da economia. O investimento na educação (em sentido lato) é, de per si, a grande alavanca do desenvolvimento da sociedade do conhecimento. Jacques Delors vai mais longe: “face aos múltiplos desafios do futuro, a educação surge como um trunfo indispensável à humanidade na sua construção dos ideais de paz, da liberdade e da justiça social […]”

artigo completo

Existe um consenso alargado de que a educação, a par da governação e as infraestruturas físicas, são os pilares da economia. O investimento na educação (em sentido lato) é, de per si, a grande alavanca do desenvolvimento da sociedade do conhecimento. Jacques Delors vai mais longe: “face aos múltiplos desafios do futuro, a educação surge como um trunfo indispensável à humanidade na sua construção dos ideais de paz, da liberdade e da justiça social”.

Numa sub-página da autarquia, lê-se “Coimbra, Cidade Educadora”. Se existe cidade merecedora deste título é Coimbra! Possui a história, até 1911, de ter a única universidade no espaço português. Entre a Rua da Sofia (de Ciência ou de Sabedoria), uma das maiores artérias à época em que foi rasgada, e a expansão urbanística da Alta, são 31 edifícios que nos contam a participação da instituição na formação da nação e na sua expansão cultural e científica, num corredor onde Cidade e Universidade nem sempre andaram de mãos dadas. Hoje as faculdades estão dispersas por três pólos e a malha urbana abraça outras escolas de excelência, como as do politécnico, a fazerem na sua área o que melhor existe no mundo. A “cidade” educa anualmente dezenas de milhares de estudantes, que deixarão certamente legado. Não resisto a relembrar uma dúzia gravada na história e na memória: Eça de Queirós, Antero de Quental, António Silva Gaio, António Nobre, José Régio, Almeida Garrett, Miguel Torga, Vergílio Ferreira, Eugénio de Andrade, Eugénio de Castro, Fernando Namora e Luís Vaz de Camões.

A cidade tem de algum modo honrado a sua história, apesar das voltas que o monumento a Luís de Camões já deu em Coimbra. À realeza, temos no alto da colina D. Dinis e D. João III e do outro lado do rio as esculturas das Rainhas Isabel de Aragão e Inês de Castro. Chega agora a vez de uma princesa, Cindazunda, ou da lenda que nos chegou: o rosto da princesa terá ficado gravado no brasão da cidade por a sua beleza ter servido, a troco de casamento, para apaziguar Ataces (Rei Alano) que derrotara o seu pai, Hermenerico (Rei Suevo) na disputa por Coimbra. Uma visão que é, afinal, a conceção religiosa e guerreira enraizada na nossa heráldica. A donzela terá tido a sua importância num contexto social bem diferente do atual, onde até os versos do Chico Buarque, imagine-se, são acusados de não respeitarem o novo “código” do politicamente correto (não tarda, por via da estrofe 36 do canto II e outras que tais, também os Lusíadas serão “queimados” em praça pública).

Não é meu propósito especular sobre o brasão ou o ângulo que capta a vantagem em transformar um antigo entroncamento numa “praça”. Tão pouco divagar, na minha ignorância, sobre a semelhança que encontro entre o “esquisse” de Cindazunda e o das Rainhas Mariana de Áustria ou Maria Luísa de Parma (óleos sobre telas, respetivamente, de Velázquez e Goya). Para que a autarquia e a academia se complementassem, e por falar em educação e em homenagens, se a autarquia já homenageou a mulher de trabalho (Tricana) e a mulher objeto (Cindazunda), porque não construir um monumento ao estudante? Seria um abraço da cidade à academia e uma homenagem às centenas de milhares de sementes enriquecidas na “Cidade Educadora”. A ideia nem é peregrina, estou só a relembrar que haverá homenagens talvez mais justificadas que outras.

Diário As Beiras, 20170905

Tweet a Charlottesville

Paulo Simões Lopes

“Ninguém nasce com ódio a outra pessoa por causa da sua cor de pele, da sua origem ou da sua religião […] se podem aprender a odiar, podem aprender a amar”. Esta citação retirada da autobiografia de Nelson Mandela (“Um longo caminho para a liberdade”), transformada num “tweet” de Barack Obama, tornou-se no mais viral de sempre, tendo ultrapassado os três milhões de gostos e o milhão de partilhas. Tudo a propósito de Charlottesville, uma cidade com pouco mais de 45 mil habitantes, globalmente perdida no Estado de Virgínia (a poucos metros da “U.S. Route 64”), agora conhecida por acolher uma manifestação extremista organizada pelos amigos “supremacistas brancos”, neonazis e, claro, os do Ku Klux Klan, de que resultou a morte de Heather Heyer e ferimentos em mais quinze pessoas […]”

artigo completo

“Ninguém nasce com ódio a outra pessoa por causa da sua cor de pele, da sua origem ou da sua religião […] se podem aprender a odiar, podem aprender a amar”. Esta citação retirada da autobiografia de Nelson Mandela (“Um longo caminho para a liberdade”), transformada num “tweet” de Barack Obama, tornou-se no mais viral de sempre, tendo ultrapassado os três milhões de gostos e o milhão de partilhas. Tudo a propósito de Charlottesville, uma cidade com pouco mais de 45 mil habitantes, globalmente perdida no Estado de Virgínia (a poucos metros da “U.S. Route 64”), agora conhecida por acolher uma manifestação extremista organizada pelos amigos “supremacistas brancos”, neonazis e, claro, os do Ku Klux Klan, de que resultou a morte de Heather Heyer e ferimentos em mais quinze pessoas.

Este não é o espaço para perceber a América profunda nem “Charlottesville”. Também é escusado gastar tempo a tentar fechar a caixa de Pandora do “White Power” (re)aberta por Trump, que afinal, se especializa, a cada dia que passa, em deixar crescer grupos de ódio à sua volta, como é bom de ver pela mensagem que recebeu do The Daily Stormer (“Ele [Trump] não nos atacou. Quando foi pedido para nos condenar […] Muito, muito bom”), o mesmo site extremista que qualificou Heather, como “uma vadia gorda de 32 anos, sem filhos, que merecia morrer”. Está tudo dito!

No outro lado do oceano, a 6.000 km de distância, no último andar da 5 de Outubro, decidiu-se encurtar até 25% os programas de Português e de Matemática a favor de atividades participativas e lúdicas. Chamaram-lhe “Projeto de Autonomia e Flexibilidade Curricular” dos ensinos básicos e secundário (Despacho nº 5908, do DR do passado 5 de julho) e é mais um programa visando a promoção do sucesso escolar e do exercício da cidadania ativa, desta vez através da valorização das artes, ciências, desporto, TIC’s e trabalho experimental. Para os mais distraídos, note-se que um aluno que inicie a sua escolaridade básica numa escola aderente, terminará o 12º ano com o número de horas letivas, nestas duas disciplinas, equivalente ao atingido até agora com o 9º ano. Aos nossos professores já foi pedido que ensinassem um pouco de quase tudo: educação ambiental e proteção do mar e das florestas; prevenção da toxicodependência e tabagismo; educação para a saúde, para as epidemias e gripes das aves; proteção civil e segurança; preservação do património e das tradições; educação alimentar; educação sexual; prevenção da violência e dos maus-tratos; ensino das novas tecnologias; prevenção de acidentes rodoviários, etc, etc. Agora reinventa-se a Escola em torno da disciplina de “Cidadania e Desenvolvimento” e atribui-se-lhe missões déjà vu que antes estavam na sociedade: direitos humanos; igualdade de género; interculturalidade; media; desenvolvimento sustentável; educação ambiental; saúde; sexualidade; segurança rodoviária; literacia financeira; educação para o consumo; instituições e participação democrática; empreendedorismo; voluntariado. Mais do mesmo, portanto.

Entretanto, os quatro pilares da educação ao longo da vida há tempo reconhecidos pela UNESCO em “Educação – um tesouro a descobrir” – aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser – são diretamente explorados por algumas escolas católicas, que há muito complementam o programa do Ministério com uma formação orientada para a defesa da família e da cidadania, independentemente de credos religiosos (porque as frequentam estudantes de outras religiões, bem como agnósticos e ateus) e sem diminuírem horas letivas a qualquer disciplina, em especial as de matemática e de português. Talvez seja por isso mais proveitoso aprendermos a lição destas escolas que têm conseguido resultados muito interessantes na formação integral do aluno (“pleno desenvolvimento físico, intelectual, cívico e moral”) do que continuar a experimentar com os jovens e os docentes. Acredito que desta forma se evite, no futuro, episódios dantescos como os de Charlottesville, porque “se podem aprender a odiar, podem aprender a amar”.

Diário As Beiras, 20170823

A preparar o futuro: quanto mais iletrados, mais controlados

Paulo Simões Lopes

“A preparar o futuro: quanto mais iletrados, mais controlados. A DGEEC publicou indicadores do legado de Nuno Crato, o chamado “pior ministro da educação desde o 25 de abril”, que indicam que as “taxas de retenção” (chumbos), numa série de 16 anos, atingiram o mínimo em 2015/16, em todos os níveis do ensino. A estes resultados pode somar-se uma “taxa de abandono precoce de educação e formação” [abandono] em 2015, foi de 13,7%, quando a tinha herdado, em 2011, a 23% e, entre outros, ainda a progressão efetiva nas avaliações internacionais, expressas no PISA 2015 (pela primeira vez acima da média da OCDE) e no TIMMS 2015 (há 20 anos Portugal ocupava a antepenúltima posição e agora o 13º lugar em 49) […]”

artigo completo

A DGEEC publicou indicadores do legado de Nuno Crato, o chamado “pior ministro da educação desde o 25 de abril”, que indicam que as “taxas de retenção” (chumbos), numa série de 16 anos, atingiram o mínimo em 2015/16, em todos os níveis do ensino. A estes resultados pode somar-se uma “taxa de abandono precoce de educação e formação” [abandono] em 2015, foi de 13,7%, quando a tinha herdado, em 2011, a 23% e, entre outros, ainda a progressão efetiva nas avaliações internacionais, expressas no PISA 2015 (pela primeira vez acima da média da OCDE) e no TIMMS 2015 (há 20 anos Portugal ocupava a antepenúltima posição e agora o 13º lugar em 49). Curiosamente, os seus opositores ignoram este sucesso e reclamam os resultados como uma opção desmesurada pela “destruição da escola pública”, servida pela “avaliação externa” (exames), qual “experiência traumatizante” a que são sujeitos os alunos. Por isso, decidem começar a eliminar a avaliação, antes e ao invés de reformular os processos que produzem as competências a ser avaliadas – ou, de outro modo – sem alterarem a “fábrica de alunos” formatada e orientada para a avaliação quantitativa, alteram as regras de avaliação!

Por esta altura o INE também apresentou a taxa de [abandono] de 2016. Ficámos a saber que aumentou +0,3% relativamente a 2015 e é agora a 4ª mais alta da Europa, numa das monitorizações da estratégia Europa 2020, podendo colocar em risco a nossa meta de 10% do programa “Horizonte 2020”. Esta variação marginal não deve ser ignorada, pois representa mais 2.300 adultos entre os 18 e os 24 anos que deixaram de estudar sem completar o secundário. Talvez por isto e sem cuidarem da verdadeira preocupação das famílias, que ignoram a cosmética e se preocupam com o “grau de conhecimento” dos seus filhos, o Ministério deu orientações às escolas para passarem os alunos, independentemente do número de negativas. É o regresso às passagens administrativas, embora Tiago Brandão diga que é tudo uma má interpretação do n.º 2 do artigo 21.º do Despacho 1-F/2016, de 5 de abril: “A decisão de transição para o ano de escolaridade seguinte reveste caráter pedagógico, sendo a retenção considerada excecional”. Independentemente da interpretação, reafirmo que a lógica da avaliação subjacente à transição de ciclo não pode nem deve ser desprezada!

Já neste mês, pelo Despacho 5908/2017, também do Gabinete do Secretário de Estado da Educação, sobre o “projeto de autonomia e flexibilidade curricular dos ensinos básico e secundário”, ficámos a saber que “O cidadão de sucesso é conhecedor, mas é também capaz de integrar conhecimento, resolver problemas, dominar diferentes linguagens científicas e técnicas, coopera, é autónomo, tem sensibilidade estética e artística e cuida do seu bem-estar”. Afinal, Nuno Crato e Tiago Brandão partilham o mesmo objetivo, existindo somente uma diferença na forma como o atingem.

Esta minha preocupação foi bem expressa por Einstein: “o único lugar onde sucesso vem antes de trabalho é no dicionário”. Parece-me até uma frase carregada de ironia, tanto mais que na língua materna do seu suposto autor, “arbeit” (trabalho) vem primeiro que “erfolg” (sucesso). Ora, inverter esta ordem é iludirmos os nossos jovens a seguirem no caminho da iliteracia, com uma visão diminuída do mundo, convencidos que adquirem aptidões, até descobrirem que não as têm e que não vão ter as oportunidades prometidas. Sobre este ponto, Nuno Crato não vai continuar a falar sozinho, porque “não há uma fatalidade social. Muito pelo contrário. A exigência no ensino é a grande oportunidade dos socialmente desfavorecidos” e o que determina o “cidadão de sucesso”. Resta saber se como cidadão autónomo ou como individuo descartável, o que nos leva de volta ao título deste texto.

Diário As Beiras, 20170716

E há poetas que são artistas

Paulo Simões Lopes

[…] Este poema de Alberto Caeiro, o XXXVI de “O Guardador de Rebanhos”, que saiu no “Exame final nacional do ensino secundário”, na prova escrita de Português do 12ª ano de escolaridade (639/1ª fase), é uma reflexão sobre o poeta “artista” cujas palavras não brotam da espontaneidade e da união que deveria ter com a natureza, mas do seu trabalho na seleção de palavras, de combinações, de sonoridades, o tratamento e construção de versos. Para Caeiro, o fruto do poeta é, antes de tudo, o inato fluído da Natureza e não neutralizar ou manter os afetos à distância, numa fuga às emoções sob um trabalho de intelectualização, como aliás está bem patente no verso: “Que triste não saber florir!”. s […]”

artigo completo

E há poetas que são artistas  | E trabalham nos seus versos  | Como um carpinteiro nas tábuas!…

Que triste não saber florir!  | Ter que pôr verso sobre verso, como quem constrói um muro | E ver se está bem, e tirar se não está!…

Quando a única casa artística é a Terra toda  | Que varia e está sempre bem e é sempre a mesma. […]

Este poema de Alberto Caeiro, o XXXVI de “O Guardador de Rebanhos”, que saiu no “Exame final nacional do ensino secundário”, na prova escrita de Português do 12ª ano de escolaridade (639/1ª fase), é uma reflexão sobre o poeta “artista” cujas palavras não brotam da espontaneidade e da união que deveria ter com a natureza, mas do seu trabalho na seleção de palavras, de combinações, de sonoridades, o tratamento e construção de versos. Para Caeiro, o fruto do poeta é, antes de tudo, o inato fluído da Natureza e não neutralizar ou manter os afetos à distância, numa fuga às emoções sob um trabalho de intelectualização, como aliás está bem patente no verso: “Que triste não saber florir!”.

Pelo percurso metafórico que incorpora, é curioso o poema ficar associado a uma grande aldrabice. Suspeita-se que uma “artista”, explicadora, soube (outra vez) o que sairia no exame nacional e deu umas “dicas” aos seus clientes. Um deles replicou essa informação privilegiada a um colega e, num ápice, os contornos do episódio espalharam-se pela internet. Talvez iniciado com um “por favor, não contes a ninguém”, termina com: “Ó malta, falei com uma amiga minha cuja explicadora é presidente do sindicato de professores, uma comuna, e diz que ela precisa mesmo, mesmo, mesmo e só de estudar Alberto Caeiro e contos e poesia do século XX. Ela sabe todos os anos o que sai e este ano inclusive. E pediu para ela treinar também uma composição sobre a importância da memória…” (excerto da gravação que circulou uns dias antes da citada prova).

Se todos os anos surgem estórias do género, qual a importância desta? Admitindo uma tremenda coincidência acertar em “Alberto Caeiro” e num conto “do século XX”, já não passa por fruto do acaso relevar a “importância da memória” para a expressão escrita (composição). A probabilidade de tal coincidência é, digo eu, a mesma que acertar na chave do Euromilhões dez vezes seguidas. Se houver dúvidas, leia-se o exame: “…defenda uma perspetiva pessoal sobre o modo como o passado é percecionado através da memória…”.

Entretanto, adormecidos pelo desaparecimento de aeronaves fantasma e outros faits divers, contam-se pelos dedos de uma mão os que alertam para o assunto, mas o que é dito nem sempre abona a favor da Educação. As declarações da presidente da Associação de Professores de Português, que li em duas peças, a serem fidedignas, são disso exemplo: na primeira mostra-se bastante chocada com os acontecimentos; na segunda, diz que “A situação está a ser empolgada”. Será mesmo assim? Sem sabermos do resto, escarrapacharam quase ¾ da prova, inclusive o tema da composição que não está nas metas nem no programa, e o que tem a dizer é que estão a empolgar a situação?

Diário As Beiras, 20170629

43 anos a brincar

Paulo Simões Lopes

“Brincar é a atividade mais séria da criança”, foi o mote escolhido pelos Serviços de Ação Social da Universidade de Coimbra para o jantar/tertúlia que assinalou o “Dia Mundial da Criança”. Fê-lo da melhor maneira, no Centro Cultural D. Dinis, na companhia da moderadora Joana Freitas Luís, delegada da Associação Profissional de Educadores de Infância da Zona Centro e dos docentes universitários Eduardo Sá e Aida Figueiredo. Estas tertúlias resultam de um processo evolutivo natural, generalizado ao cidadão comum, finalmente capacitado para uma discussão instruída. Infelizmente, nem sempre foi assim. Cem anos antes da entrada em vigor da atual Lei de Bases do Sistema Educativo, quando por “Carta de Lei” se definiu a obrigatoriedade da frequência do 1º grau do ensino primário (3 anos), o país tinha cerca de 600.000 crianças em idade escolar que não frequentavam a escola. Apesar de manifestos esforços, 30 anos depois, já no início do século passado, 75% da população ainda era analfabeta. Não se imaginava nessa altura poder-se discutir um objetivo para o Horizonte 2020, de 40% de licenciados na faixa etária entre os 30-34 anos […]”

artigo completo

“Brincar é a atividade mais séria da criança”, foi o mote escolhido pelos Serviços de Ação Social da Universidade de Coimbra para o jantar/tertúlia que assinalou o “Dia Mundial da Criança”. Fê-lo da melhor maneira, no Centro Cultural D. Dinis, na companhia da moderadora Joana Freitas Luís, delegada da Associação Profissional de Educadores de Infância da Zona Centro e dos docentes universitários Eduardo Sá e Aida Figueiredo.

Estas tertúlias resultam de um processo evolutivo natural, generalizado ao cidadão comum, finalmente capacitado para uma discussão instruída. Infelizmente, nem sempre foi assim. Cem anos antes da entrada em vigor da atual Lei de Bases do Sistema Educativo, quando por “Carta de Lei” se definiu a obrigatoriedade da frequência do 1º grau do ensino primário (3 anos), o país tinha cerca de 600.000 crianças em idade escolar que não frequentavam a escola. Apesar de manifestos esforços, 30 anos depois, já no início do século passado, 75% da população ainda era analfabeta. Não se imaginava nessa altura poder-se discutir um objetivo para o Horizonte 2020, de 40% de licenciados na faixa etária entre os 30-34 anos.

Na véspera da Revolução dos Cravos, 25% da nossa população continuava analfabeta. Em 1986, no ano da atual Lei de Bases, o Estado gastou com a educação 900 milhões de euros. Hoje gasta quase 10 vezes mais, numa escala agora medida em milhares de milhões de euros, mas que apresenta resultados condizentes: a taxa de escolarização no pré-escolar triplicou, no secundário quadruplicou e a taxa de analfabetismo situa-se nos 5%. Não tenhamos dúvidas, a “fábrica de alunos” teve o seu tempo, mas foi um dos maiores acontecimentos deste país!

Agora a OCDE vem dizer que os nossos jovens passam demasiado tempo nas aulas. Que não progridem mais no PISA porque são muito bons a reproduzir conhecimento, mas não a explorar nem a aplicar. O Prof. Eduardo Sá é um dos investigadores que há vários anos, recorrentemente chama a nossa atenção para este crescimento absurdo que estamos a proporcionar aos jovens: “as crianças têm que ser jovens tecnocratas de fraldas antes dos seis, têm que ser jovens tecnocratas de mochila depois dos seis e têm que ser jovens tecnocratas de sucesso ao entrarem na universidade para que, finalmente – como se fosse uma linha de montagem –, saíssem todos mestres” aos 22 anos, numa escola de fast food, sem tempo para degustar, quanto mais para digerir.

Ensinamos em tenra idade as leis básicas da física e, simultaneamente, retiramos as árvores dos recreios e transportamos o mundo das quedas para o imaginário. Ocorre-me Cecília Meireles e o poema incluído num Plano Nacional de Leitura, sem que alguém ‘de direito’ o tenha lido “… Quem sobe nos ares não fica no chão | quem fica no chão não sobe nos ares…” Irónico?

Pior, o ensino obrigatório, enfileira, na sua maioria, os “melhores macaquinhos de imitação” para o ensino superior, sem sequer se preocupar em adaptar um novo ensino a estes “novos” jovens. Parece os amarramos aos anos 80, à geração DOS, com aqueles écrans similares aos quadros de ardósia, sem querermos perceber que os jovens de hoje trabalham em ambiente multi-task e de crowd intensive usage. Continuamos a dizer-lhes: “não se vê com as mãos”, o que não é de estranhar quando a atual Lei de Bases é pré-internet.

O passo seguinte, o grande desafio, é mudarmos da escola de massas para a de qualidade. E isto tem tudo a ver com brincar! Com a liberdade de criar, de explorar, como descreve João Cabral de Melo num dos seus versos às “mãos que [queriam] criam coisas”.

Voltando ao início, passaram 9 anos desde que o meu filho mais novo saiu do Jardim de Infância dos SASUC. Ali cresceu e rebolou com outras “tartarugas”, num cenário mágico com árvores, veja-se só, e, de vez em quando, com lama. No passado dia 1 fui cumprimentado por vários educadores que me acompanharam na tertúlia. Sem exceção, os que em tempos ajudaram a mimar o meu filho, perguntaram pelo homenzito pelo seu nome, e eu, para além de ter confirmado que foi uma dádiva ele ter-se cruzado com esta equipa, aproveito para generalizar a minha satisfação às famílias das 8.800 crianças (felizes) que desde 1973 brincaram neste serviço.

Bem-haja SASUC.

Diário As Beiras, 20170608

Torremolinos

Paulo Simões Lopes

“Frequentemente, tenho-vos ouvido falar daquele que comete uma ação má como se não fosse dos vossos, mas um estranho entre vós e um intruso em vosso mundo. Mas eu vos digo: da mesma maneira que o santo e o justo não podem elevar-se acima do que há de mais elevado em vós, assim o perverso e o fraco não podem descer abaixo do que há de mais baixo em vós. E da mesma forma que nenhuma folha amarelece senão com o silencioso assentimento da árvore inteira, assim o malfeitor não pode praticar seus delitos sem a secreta concordância de todos vós.” Nesta poesia em prosa, copiada de “O Profeta” de Gibran Khalil, encontro as imagens transformadas em parábolas que melhor definem os da geração que agora pregam sobre “Torremolinos” […]”

artigo completo

“Frequentemente, tenho-vos ouvido falar daquele que comete uma ação má como se não fosse dos vossos, mas um estranho entre vós e um intruso em vosso mundo. Mas eu vos digo: da mesma maneira que o santo e o justo não podem elevar-se acima do que há de mais elevado em vós, assim o perverso e o fraco não podem descer abaixo do que há de mais baixo em vós. E da mesma forma que nenhuma folha amarelece senão com o silencioso assentimento da árvore inteira, assim o malfeitor não pode praticar seus delitos sem a secreta concordância de todos vós.” Nesta poesia em prosa, copiada de “O Profeta” de Gibran Khalil, encontro as imagens transformadas em parábolas que melhor definem os da geração que agora pregam sobre “Torremolinos”.

Numa espécie de ritual dinástico, as gerações mais antigas vão culpando as vindouras. A “geração tasca” culpou a “Coca-Cola” e esta a “Spectrum”. Numa escalada de predicados menos abonatórios, 23 anos depois, a “rasca”, batizou a atual de “nojo” ou “perdida”. Apagámos da memória coletiva os excessos cometidos à saída do Kiss e do Piper`s, com a moral que muitos não possuem, apressámo-nos a acusar, como se a árvore recriminasse o fruto por nascer podre! Talvez assim se aliviem as consciências para poderem falar do inexplicável: Os organizadores, para quem o “objetivo principal de uma viagem de finalistas é que eles se divirtam e tenham uma semana top, para daqui a 20 anos ainda se lembrarem”; Os acompanhantes, que declaram “o mais estranho que vi foi um sofá que estava no corredor, no elevador”; Os jovens, que “só tinham partido o elevador, umas paredes pintadas e uns candeeiros destruídos”; Os pais, que “Se queremos as pessoas sossegadas e quietas, compramos um hotel em Fátima”; Os professores, “E sim, são estes 1000 que dia 19 de Abril regressam às escolas para os professores aturarem…”; A direção nacional da PSP, para quem “o comportamento [dos estudantes expulsos] extrapolou o aceitável”; o Ministro da Educação, a garantir-nos que estava a “seguir com atenção o caso dos alegados danos”.

Descobrimos, finalmente, que os jovens que não vão para Taizé comportam-se como os Ingleses em Portugal, os Americanos em Cancún ou os Russos na Grécia, numa desresponsabilização coletiva, que afinal não é mais do que o resultado da conjugação complexa de vários fatores, onde encontramos o conflito entre a educação dada pela família e a escolarização pretendida pelo estado ou a oposição entre a educação familiar e o ensino imposto pela sociedade, cada vez mais centrada nos interesses que estão muito para além das fronteiras geográficas. O confronto entre a comunidade educativa e a escolar, no edifício escolar contruído para os que querem aprender, mas que serve quem já sabe. O ensino de massas, que retirou a nossa escolarização do nível terceiro-mundista, mas sem dedicação ao aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser, somando-se a eterna conflitualidade das políticas do Ministério que, nos últimos 10 anos, entre programas das disciplinas, metas curriculares e avaliação de alunos, encontrou 40 vezes a razão para os alterar, tornando-nos reféns deste emaranhado de objetivos.

Agora, sem o foco cego dos apedrejadores do prime time, será tempo para pensar numa abordagem construtiva a esta questão. Tempo para desenvolver a aprendizagem para a responsabilidade. Enquanto assim não for, seremos sempre coautores desta desordem! E, porque há que educar os jovens (e muitos adultos) para se sentirem responsabilizados pelos seus atos, impõe-se a opção de mudarmos o sistema educativo ou continuarmos a entender cada vez menos e a julgar cada vez mais.

Post scriptum: Este texto foi escrito no dia internacional do trabalhador, um dia de pausa dedicado ao intangível, que os dias de trabalho afogam na vertigem de ter para ser…

Diário As Beiras, 20170511

Da comunidade educativa para a sociedade educativa

Paulo Simões Lopes

“O Perfil dos alunos à saída da Escolaridade Obrigatória (em consulta pública) não é uma Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE), mas, seguramente, merece outra atenção que não está a ter, tanto mais que, se impomos uma escolaridade obrigatória, é fundamental ajustarmos a sua finalidade às exigências da sociedade atual. Trata principalmente, de definir as “competências” que os jovens devem possuir no final da escolaridade no modelo de sociedade que queremos construir. […]”

artigo completo

O Perfil dos alunos à saída da Escolaridade Obrigatória (em consulta pública) não é uma Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE), mas, seguramente, merece outra atenção que não está a ter, tanto mais que, se impomos uma escolaridade obrigatória, é fundamental ajustarmos a sua finalidade às exigências da sociedade atual. Trata principalmente, de definir as “competências” que os jovens devem possuir no final da escolaridade no modelo de sociedade que queremos construir.

A escola, lentamente, está a deixar de ser uma “fábrica de alunos” ao abandonar o ascendente da formação em quantidade pela formação em qualidade. Está a aproximar-se da sua missão de contribuir, com o seu conhecimento, para a formação de cidadãos mais capazes e mais próximos dos valores pelos quais a humanidade se deve reger. Por outro lado, também a distinção entre a educação formal e a educação permanente está a ser, lentamente, esbatida, entroncando-se as duas na educação ao longo da vida. É o abandono da conceção de “comunidade educativa” e a convergência para a da “sociedade educativa”, conciliando-se assim a tendência que a educação formal tem para privilegiar o acesso ao conhecimento com as outras formas de aprender. Esta é a chave para abrir as portas para o século XXI: a da difusão das ligações entre a escola e a sociedade, onde todos cabem como agentes educativos, preferencialmente alicerçados nos 4 pilares tão atuais da educação ao longo da vida, referidos no relatório Delors “Learning: The Treasure Within” (UNESCO, 1996): aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser.

Da discussão pública do Perfil dos Alunos e fazendo uma leitura superficial ao documento, parece tudo um conjunto de boas intenções moldadas para uma aprovação geral (como aliás se impunha). No entanto, numa leitura atenta, divirjo principalmente do ponto 5: “competências-chave”. Primeiro, porque estas agregam uma imprecisão, talvez proveniente da tradução de diferentes termos: skill, competence ou competency, que incorporam, no todo, uma diversidade conceptual da “competência”. Segundo, porque não aprecio que se centralize a educação num conceito associado às teorias do capital humano e estranho, mais uma vez, a atual insistência nas teorias liberais. Terceiro, porque ao invés de formarmos “profissionais competentes” devemos formar “pessoas capazes”. Partilho aqui do conceito de David Justino adaptado de Amartya Sen “cada pessoa é capaz de ser e de fazer”, onde a centralidade do sistema é dada às “capacidades”, para onde convergem as finalidades, as atitudes, o conhecimento e as “competências”. Por último, se não pretendem mais um documento esquecido como o Perfil Cultural Desejável do Diplomado do Ensino Secundário de 1988, ou o Perfil desejável dos alunos à saída do Ensino Secundário, de 1992, ou ainda o Currículo nacional do ensino básico. Competências essenciais, de 2001, convém que respeitem a Lei de Miller e o número mágico dos sete elementos (sete para dígitos, seis para letras e cinco para palavras), como releva numa reflexão recente Dias de Figueiredo, porque não haverá quem memorize as dez “competências-chave” agora propostas.

E por falar em capacidades, encontram facilmente três pequenos textos deste último investigador (“Que Competências para as Novas Gerações?”). É mais um contributo “out of the box” que resume a quatro as “Competências para as novas gerações”, com quase tudo o que precisamos para preparar os jovens para o século XXI.

Diário As Beiras, 20170330

“Populismo ou Democracia? O Brexit, Trump e Le Pen em debate”

Paulo Simões Lopes

“Não simpatizo com extremistas e desconsidero os Torquemadas, na mesma proporção com que desvalorizo os que apregoam a boa bondade de Pol Pot, mas como sou pela cidadania e pela liberdade de opinião e de expressão, todos devem poder expressar-se, até os radicais que se escondem do seu Estalinismo ou do seu Nacionalismo, mesmo os que veneram os seus ditadores e que odeiam os restantes […]”

artigo completo

Não simpatizo com extremistas e desconsidero os Torquemadas, na mesma proporção com que desvalorizo os que apregoam a boa bondade de Pol Pot, mas como sou pela cidadania e pela liberdade de opinião e de expressão, todos devem poder expressar-se, até os radicais que se escondem do seu Estalinismo ou do seu Nacionalismo, mesmo os que veneram os seus ditadores e que odeiam os restantes.

A propósito da diversidade de ideias, a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, a pedido da sua Associação de Estudantes, cancelou a conferência que deu o título a este texto. Fê-lo, suportada por uma moção aprovada por 0,5% dos seus alunos, com o argumento de que o “evento está associado a argumentos colonialistas, racistas e xenófobos”, prontamente contrariado pelo promotor da conferência, que se demarca do radicalismo e que “execra toda a forma de colonialismo”. Haverá outra(s) versão(ões) para esta estória, possivelmente, mas, de uma forma ou de outra, e pelos termos acima empregados, é sempre um mau momento na história da nossa democracia.

Francisco Seixas da Costa, membro do Conselho da Faculdade, lastimou “que a direção da escola tenha sido forçada, contra a sua vontade, a tomar esta atitude, para salvaguarda da estabilidade funcional da instituição. E porque convém chamar os bois pelos nomes, que fique claro que esta inadmissível atitude censória, foi tomada por uma estrutura de estudantes identificada com o Bloco de Esquerda.”

A Associação 25 de Abril, presidida por um dos mais conhecidos Capitães de Abril, decidiu “manifestar ao Prof. Nogueira Pinto o repúdio [pelo] silenciamento da sua opinião” e disponibilizou “as suas instalações para a realização da conferência”. Manuel Alegre, considerou que a decisão “é um ato contra a liberdade de expressão e contra os valores fundamentais da democracia”. Da meia dúzia de provas de solidariedade para com o politólogo, lamento não ouvir os que habitualmente se insurgem a favor das “minorias”. Sentiu-se a ausência da voz de Mário Soares através dos que, afinal, já não honram a sua memória, sobretudo a da sua oposição ao “Processo Revolucionário Em Curso”.

Eventualmente, receio também que o tema da liberdade de expressão na universidade não seja consensual. Há os que entendem que as oportunidades de aprendizagem devem ser confrontadas com visões e paradigmas diferentes e os que entendem que este deve ser um “espaço seguro” sem “centros de detonação”. A minha perceção, admitindo correção, é a de que se não abordarmos esta mundivisão política nas faculdades, com seriedade, rigor e verdade, não restará onde discuti-la. Até porque, se aprender a conviver é um dos pilares da educação, então também cabe à universidade desenvolver a compreensão mútua e o respeito total pelos valores do pluralismo.

Talvez esta seja a oportunidade que faltava para reiniciarmos o debate, sem os pirómanos do costume, sem “sprays”, “sound bites” e sem invadirem ou vandalizarem a universidade.

Diário As Beiras, 20170315

Não há gratuitidade nos manuais escolares!

Paulo Simões Lopes

“Quando se dá menos importância aos livros relembro “César e Cleópatra”, de Bernard Shaw, e a sua descrição da biblioteca de Alexandria como a memória da humanidade. Curioso é que Shaw, para além de prémio Nobel, foi também um dos Big Four da “Sociedade Fabiana […]”

artigo completo

Sempre que começo a dar menos importância ao livro relembro em “César e Cleópatra”, de Bernard Shaw a importância que têm para mim. Shaw descreve a biblioteca de Alexandria como a memória da humanidade. É assim que vejo os livros. Não os natimortos, mas os que duram para além da civilização, os que respondem sem falar. Faço esta ligação curiosa porque Shaw, para além de premiado com um Nobel, foi um dos “Big Four” da Sociedade Fabiana. Uma sociedade inspirada no general Quintus Fabius Maximus, conhecido por derrotar os seus inimigos através de pequenas e graduais ações procrastinadoras, enganadoras e cansativas.

Quiçá inspirado no Socialismo Fabiano, o Estado Português, de forma envergonhada, implementou um conjunto de medidas tendentes a “promover a igualdade de acesso às oportunidades educativas” (in regime jurídico da ASE). Digo envergonhada porque entendo que este auxílio económico não está a funcionar com a abrangência e a cobertura desejada, suportando esta lacuna a insistência do governo na “gratuitidade” dos manuais escolares. Este plano suscita dúvidas e merece reflexão:

– Em primeiro porque se alega que o custo da iniciativa será atenuado pela consequente diminuição do “insucesso e abandono escolar“, que dizem persistir devido aos parcos recursos das famílias. No entanto, se a taxa de retenção no 1º ciclo é de 5% e no secundário de 18%, porque não começar por onde o aproveitamento escolar é menor?

– Em segundo porque não há complementaridade de ações, já defendida pelo CNE, através da política de preservação e sustentabilidade ambiental (reutilização dos livros), da formação cívica (preservação do livro) ou da durabilidade dos manuais (6 a 10 anos).

– Em terceiro porque não integra uma aposta na consolidação do conhecimento, cuja evolução, bem sabemos, não obriga à revisão anual dos manuais, nem às mudanças cosméticas que lhes são introduzidas. Pior ainda, porque se alteram sistematicamente as metas de aprendizagem mas não as programáticas e, mesmo assim, se legitimam alterações ao ISBN, muitas vezes sem qualquer reformulação do manual!

– Por último, preocupante, porque apelam à contenção da despesa pública e, simultaneamente, avançam com planos plurianuais de despesa que comprometem gerações futuras. Tudo tem um preço. Direta ou indiretamente, nada é gratuito! Quando (e se) o programa estiver a cobrir os 12 anos de escolaridade, terão de tirar cerca de 150 milhões de euros/ano ao bolso dos contribuintes, mais 20M€ que o custo anual dos contratos de associação discutidos no passado ano letivo. Assim, ensaia-se uma questão de fundo sobre a qual ainda não vi reflexão substantiva para a redistribuição dos impostos: Qual a medida com maior impacto na sociedade e qual é que desenvolve maior taxa de retorno, maior produtividade, competitividade, adaptabilidade, conhecimento e, já agora, desenvolvimento? Apoiar projetos de ensino alternativos à escola do estado (com todas as virtudes e defeitos já apontados por críticos e apoiantes do ensino particular e cooperativo) ou “oferecer” manuais escolares a todos os jovens que frequentem o ensino obrigatório (incluindo os cerca de 300.000 alunos que, por opção, frequentam escolas privadas).

À parte desta reflexão, ou mesmo por causa dela, perante um problema cíclico alimentado por milhão e meio de alunos, não haverá melhor alternativa? Porque não a conversão e atualização dos conteúdos para formato digital e a sua disponibilização em “open source” (respeitando os direitos de autor, claro está). Demasiado fraturante? Eliminaríamos os intermediários que incorporam nos seus manuais “científicos” conteúdos grátis da Wikipédia, custar-nos-ia uma “ninharia”, prestaríamos o maior serviço público alguma vez feito a 250 milhões de falantes da língua Portuguesa, passaríamos a valorizar os que educam para além dos manuais escolares e, de uma vez por todas, depositaríamos nos professores a confiança que nos merecem. De caminho, ainda tratávamos de não endividar os nossos filhos. É que, contrariamente ao que apregoa, o Fabianismo nasceu dentro de uma “classe média liberal capitalista” e é lá que continua a financiar-se, serenando as classes com promessas, distribuindo favores com a mão cheia dos nossos impostos. Pior, valorizando a caridade gratuita em prejuízo da corresponsabilidade e da cidadania social.

Diário As Beiras, 20170306

Não deixamos cair o Alexandre nem o Falcão!

Paulo Simões Lopes

“As Escolas Secundárias Alexandre Herculano no Porto e a José Falcão em Coimbra herdam os genes dos Liceus mais antigos do país. O primeiro foi inaugurado em 1921 (vindo de outras instalações e de outros nomes). O segundo, por via do “Colégio das Artes”, fundado em 1548 por D. João III, foi “Liceu de Coimbra”, depois Liceu José Falcão, adiante rebatizado Liceu D. João III, e muda para as atuais instalações em 1936. Desde essa data, a única alteração de substância feita à escola ocorre em abril de 1974, com nova mudança do nome […]”

artigo completo

As Escolas Secundárias Alexandre Herculano no Porto e a José Falcão em Coimbra herdam os genes dos Liceus mais antigos do país. O primeiro foi inaugurado em 1921 (vindo de outras instalações e de outros nomes). O segundo, por via do “Colégio das Artes”, fundado em 1548 por D. João III, foi “Liceu de Coimbra”, depois Liceu José Falcão, adiante rebatizado Liceu D. João III, e muda para as atuais instalações em 1936. Desde essa data, a única alteração de substância feita à escola ocorre em abril de 1974, com nova mudança do nome.

Estas duas escolas já justificaram, repetidamente, cada escudo nelas investido. Vão no segundo ciclo de depreciação, embora com um legado inatingível pelas intervencionadas pela Parque Escolar, como a Secundária Jácome Ratton, em Tomar, onde só a fatura tangível de 12 candeeiros, ascendeu a 20.000€. Que diriam sobre isto Almada Negreiros, António José de Almeida, Bernardino Machado, Bissaya Barreto, Eugénio de Castro, Fernando Namora, Manuel Teixeira Gomes, Miguel Torga, Veiga Simão ou o Zeca Afonso? Três ex-presidentes da República entre dez ex-alunos desta escola de Coimbra e estes entre muitos outros que aí “passaram”.

Sem a manutenção que lhes era devida, os seus alunos sujeitam-se a que lhes caia “um bocado de teto em cima”. “Chove em várias salas” e “em abundância no pavilhão, cujo pavimento apresenta fissuras”, “parte da canalização e da instalação elétrica é ainda a original” e “no inverno, há alunos que trazem mantas”. No Porto, a escola avançou com a petição “Não deixamos cair o Alexandre”. Quase em simultâneo, cerca de 300 estudantes tiveram de ser deslocados para a Ramalho Ortigão. Em Coimbra, num edifício da génese da arquitetura moderna em Portugal, a petição é pela “Intervenção urgente e de fundo…”. Ambas pretendem levar a discussão à Assembleia da República, salvar os edifícios classificados e devolver a dignidade ao serviço público de educação que, honra seja feita aos seus atuais diretores, não pode ser apenas avaliado pelos resultados dos rankings.

É hora de o estado enriquecer estas instalações. Não deixa de ser curioso que, em março de 2016, o estudo “Análise da Rede de Estabelecimentos do Ensino Particular e Cooperativo com contrato de associação”, tenha apresentado estas duas unidades com “capacidade para acolherem turmas adicionais” vindas, no primeiro caso, do Externato Liceal Paulo VI e, no segundo caso, do Colégio de S. José. Independentemente da motivação ideológica, estas opções dizem muito da seriedade destes “estudos” e das políticas nelas sustentadas, pelo menos no que toca à salvaguarda da integridade e segurança dos alunos.

Mas, pior que uma má opção política ou um devaneio luminoso da Parque Escolar, é alguém se ter lembrado de garantir à tutela, já depois do citado “estudo”, que “as escolas públicas [do conselho de Coimbra] se encontram subaproveitadas e estão em condições de assegurar resposta educativa de qualidade a todos os alunos” (sic).

Diário As Beiras, 20170202

Educação: Política “neoliberal” num governo de esquerda

Paulo Simões Lopes

“As alterações estruturais na Universidade no último século, ocorreram à mesma velocidade com que o sol foi colorindo da cor do ouro velho a pedra dos muros das nossas universidades. A sua missão manteve-se praticamente inalterada, mas a aceção do conhecimento modificou-se imenso. Enquanto antes teria de ser transmitido na sala de aula ou no edifício escolar, hoje está virtualmente por toda a parte. Anteriormente, era perdurável no aluno por décadas ou mesmo por toda uma vida sem evoluções bruscas e agora é ubíquo e tem que estar em permanente atualização. Até há algum tempo, um grau universitário era selo de garantia de empregabilidade e hoje já não chega para, por si só, competir no mercado de trabalho. Dantes servia a comunidade e hoje serve, essencialmente, a entidade patronal. […]”

artigo completo

As alterações estruturais na Universidade no último século, ocorreram à mesma velocidade com que o sol foi colorindo da cor do ouro velho a pedra dos muros das nossas universidades. A sua missão manteve-se praticamente inalterada, mas a aceção do conhecimento modificou-se imenso. Enquanto antes teria de ser transmitido na sala de aula ou no edifício escolar, hoje está virtualmente por toda a parte. Anteriormente, era perdurável no aluno por décadas ou mesmo por toda uma vida sem evoluções bruscas e agora é ubíquo e tem que estar em permanente atualização. Até há algum tempo, um grau universitário era selo de garantia de empregabilidade e hoje já não chega para, por si só, competir no mercado de trabalho. Dantes servia a comunidade e hoje serve, essencialmente, a entidade patronal. A sociedade evoluiu a um ritmo alucinante a que as universidades responderam com o conhecimento “pluriversitário”: internacionalizaram-se, adaptaram a sua agenda educacional, passando a competir a nível global por recursos, estudantes, docentes, investigadores e técnicos. Neste mercado globalizado, as universidades precisam de ser geridas com maior flexibilidade, eficácia e competitividade. Uma das ferramentas facilitadoras desta “nova” gestão é o respeito pela autonomia universitária consagrada na lei ou o reforço desta (como aconteceu com a UL), ou ainda, a que advém do regime fundacional.

A universidade pública de natureza fundacional nasceu com o RJIES, em 2007, com Mariano Gago, e é, na opinião da anterior Ministra da Educação Margarida Mano, “uma entidade auto sustentada, que está no mercado em competição com as entidades privadas e por isso tem mecanismos de gestão adequados em termos de recursos humanos, de compra e venda de património, etc.”. A universidade-fundação, mantem o caráter público, mas, com o recurso ao direito privado, fica dotada de mecanismos que agilizam a gestão dos seus processos. Um regime “hibrido”, com regras do direito público e do direito privado, com objetivos contratualizados com o Estado e supervisionados por um Conselho de Curadores, que substitui muitas das competências até aí concentradas na tutela, conciliando-se desta forma a autonomia universitária com o controlo da instituição por parte do governo. Neste regime, a gestão deixa de estar confinada aos objetivos do orçamento e da gerência anual e passa a ser contratualizada por objetivos plurianuais (em abono da verdade, o estado não cumpriu o contratualizado e o regime tem sido o da gestão anual).

Apesar das limitações legais introduzidas em contexto de crise, a opção por este regime continua a colher interesse pelo facto de a universidade-fundação surgir como a única resposta possível à necessidade premente do reforço da autonomia universitária, que era já urgente em 2007. Pese embora esta parecer a única solução para uma maior autonomia, em 2013, o então Secretário de Estado do Ensino Superior, João Queiró, deixou uma proposta de revisão do RJIES, mais no plano jurídico, do que de direito privado, onde definia a “Atribuição às instituições de ensino superior públicas do regime de autonomia reforçada”, num processo de intenções entre o aperfeiçoamento de uma Lei que merecia a correção de alguns erros graves intrínsecos, com o objetivo de lhe introduzir um pensamento e uma posição estratégica do Estado (da constituição) em relação às Universidades públicas.

Entretanto, não se discute a essência do problema, os partidos que suportam o atual governo ajudam a execução de ações políticas incoerentes e, pior, estão a conduzir o debate politico para dentro da academia, quando o foco desta é o da discussão cientifica e estratégica, como a de aferir se os atuais instrumentos de gestão são ou não os mais ajustados à sua atual missão?

Entretanto, nas principais artérias da nossa cidade vão aparecendo mensagens anti-fundação assinadas pelos partidos do atual arco de governação, que levantam a questão da congruência da estratégia do governo quando está a utilizar no seu programa de esquerda políticas “neoliberais”. De outro modo, como se justifica a opção de retirar da rede de ensino público não superior o ensino contratualizado com os privados enquanto, em paralelo, incentiva as “melhores” universidades a avançarem para um regime parcialmente privado? Se a diferença reside nas regras de gestão e não na propriedade, como aliás é assumido no Relatório de Avaliação do Regime Fundacional da UP de 2014: “indubitavelmente uma entidade pública, com direito a um financiamento do Estado calculado pelas mesmas regras fixadas na lei para o financiamento do Estado às demais instituições de ensino superior públicas”, também é certo que esta reivindica, no mesmo espaço, “o recurso ao regime privado, sem possibilidade de imposição de regras da administração pública”…

Diário As Beiras, 20170128

Rankings: “Pão e Circo”

Paulo Simões Lopes

“Rankings: “Pão e Circo” A história é generosa em descrições de episódios de manipulação e controlo da opinião pública. “Pão e Circo” ficaram associados ao mais conhecido de todos: A queda de Romulus Augustus aos pés do bárbaro Odoacro. Enquanto “Roma” se desmoronava como um castelo de cartas, a aristocracia acalmava a ira da população e as revoltas sociais com alimento e divertimento, para o caso, com a distribuição de cereais e a promoção dos espetáculos de arena. […]”

artigo completo

A história é generosa em descrições de episódios de manipulação e controlo da opinião pública. “Pão e Circo” ficaram associados ao mais conhecido de todos: A queda de Romulus Augustus aos pés do bárbaro Odoacro. Enquanto “Roma” se desmoronava como um castelo de cartas, a aristocracia acalmava a ira da população e as revoltas sociais com alimento e divertimento, para o caso, com a distribuição de cereais e a promoção dos espetáculos de arena.

Apesar da técnica ser antiga, na década de 80 do século passado, num documento esquecido numa fotocopiadora militar e atribuído ao grupo Bilderberg, “Armas silenciosas para guerras tranquilas”, foi possível encontrar um tutorial sobre como controlar a opinião pública através da manipulação mediática, utilizando a estratégia da distração. As passagens são explícitas: “A regra geral é que há um lucro na confusão […]. Portanto, a melhor abordagem é criar problemas e depois oferecer soluções […]. Manter a atenção do público distraída, longe dos verdadeiros problemas sociais”

Ocorre-me esta introdução pelas “reformas” constantes a que está sujeita a educação, sempre a pretexto do que não é essencial: Fecham escolas para fortalecer outras, quando deveriam melhorar os resultados de todas; atacam projetos educativos com taxas de sucesso elevadas quando deviam combater o insucesso; prometem a gratuitidade dos manuais escolares, mas não avaliam a Ação Social Escolar; usam decretos para diminuir o número de alunos por turma ao invés de confiarem esta gestão às escolas; mudam os currículos pedagógicos sem consolidarem e avaliarem os existentes; destroem um sistema de avaliação externa às escolas sem que tenham sido criadas as condições para se proceder a uma avaliação alternativa e independente; valorizam a taxa de retenção escolar ao invés de reconhecer o extraordinário papel dos professores nos resultados do TIMSS 2015, no TIMSS Advanced 2015 e no PISA 2015; introduzem novos parâmetros na avaliação externa às escolas para privilegiar a hierarquização das escolas públicas mas as privadas continuam maioritariamente à frente. Enfim, destrói-se por questões puramente ideológicas, não existem pactos na educação, não se aprende com a prática, não se corrigem os erros e a discussão quase que se resume a variáveis orçamentais, quando todos sabemos que formar um cidadão é muito mais que produzir uma mercadoria.

Se insistem nesta abordagem, há que ter presente que a despesa com o ensino não superior ronda os 6.000.000.000€ e que a sua distribuição obedece, regra geral, a uma relação de 80% para despesas com pessoal e 20% para despesas correntes e de capital, pelo que ficamos obrigados a recentrar a discussão no custo e nas competências do professor, como refere Joseph Zins em “Building academic success on social and emotional learning: what does the research say?”.

Saltemos por cima da lista interminável de fatores que influenciam a educação e o sucesso escolar e relevemos aqui a “qualidade” dos professores ou, como apontou Joaquim Azevedo na “Organização da escola e promoção do sucesso escolar” (CNE), os “professores mais experientes”, porque é do desempenho destes que mais dependem os resultados escolares, conforme afirma MaKinsey, em “How the world’s best-performing school systems come out on top” ou Raymound e Negassi, em o “Quinto Compromisso”, na meta-análise de cinquenta anos de investigação em educação “What Helps Students Learn? Spotlight on Student Success”, ou ainda, em “Measuring the Impacts of Teachers I: Evaluating Bias in Teacher Value-added Estimates”, com uma análise ao desempenho do professor e o impacto produzido pela sua entrada e saída nas avaliações quantitativas da sua turma.

Assim, com a certeza de que a qualidade de um sistema de ensino não pode exceder a qualidade dos seus professores, como pode o ME capacitá-los para acolherem, acompanharem, distinguirem, interpretarem, orientarem e agregarem o conhecimento de hoje? Se nem todos são suficientemente eficientes e eficazes; se nem todos têm o dom da imaginação para sugerir e o conhecimento para enriquecer; se nem todos exercem a educação inclusiva e, portanto, diferenciada; se nem todos conseguem motivar e cativar os alunos, urge interrogar: Por onde começar para que todos se tornem ainda melhores na sua missão? E, já que falamos em motivação, como premiá-los de modo efetivo pelos seus sucessos? Como reconhecer-lhes o esforço e a dedicação de forma equitativa, quando muitas vezes o seu sucesso fica limitado à análise estática dos rankings e aos resultados obtidos por quem não quer aprender?

Quatro décadas depois da “grande, urgente e decisiva batalha da educação”, da democratização do sistema educativo, do reconhecimento do professor como “a raiz da vida nacional”, das múltiplas reformas e das múltiplas soluções já desenhadas para cada uma das provocações que aqui deixo, quantas mais “reformas” virão para desviar a razão do essencial, destruir o funcional e propagandear o acessório?

Diário As Beiras, 20161228

Que Universidade para o futuro

Paulo Simões Lopes

“Que Universidade para o futuro” A propósito da reflexão promovida pelo Conselho Geral da Universidade de Coimbra, “O futuro para a Universidade, que Universidade para o futuro”, não sendo possuidor de competências em “futurologia”, coloco o foco no que se deseja para esta Universidade no futuro. Para onde queremos ir? Como podemos fazê-lo? […]”

artigo completo

A propósito da reflexão promovida pelo Conselho Geral da Universidade de Coimbra, “O futuro para a Universidade, que Universidade para o futuro”, não sendo possuidor de competências em “futurologia”, coloco o foco no que se deseja para esta Universidade no futuro. Para onde queremos ir? Como podemos fazê-lo?

Vivenciamos uma reconstrução radical da nossa sociedade e, por consequência, da nossa Universidade, diariamente sujeita a pressões internas, para se manter na vanguarda da investigação e da tecnociência, e externas, pressionada pela globalização da economia e por “atores” políticos que já não vivem exclusivamente dentro da nossa fronteira geográfica.

O maior de todos os desafios que se coloca à Universidade, surge de um problema que ela não criou e que não pode controlar: o “inverno demográfico”. Conforme alerta repetidamente o Magnífico Reitor, a baixa taxa de natalidade vai mudar por completo e de forma dramática, já na próxima década, a Universidade. Não podemos mais ignorar que um país para manter a sua população, deve ter uma taxa de natalidade de 2,1 filhos por cada mulher, enquanto o atual registo português se situa em 1,2.

Neste novo contexto, a Universidade responde com a construção de vasos comunicantes transdisciplinares entre as áreas do saber. As transformações são evidentes na escola do conhecimento e na formação multidisciplinar. A Universidade continuará a ser o motor do conhecimento, mas sempre com uma ação desenvolvida para a sociedade e, por consequência, com um novo paradigma: o da complexidade e da imprevisibilidade.

Estando neste momento a decorrer o processo de eleição dos membros do Conselho Geral da UC, a quem compete aprovar o Plano Estratégico e os Planos de Ação da UC, deixo seis pontos para reflexão:

1º Financiamento vs recursos disponíveis Sendo os recursos públicos escassos, quais os mecanismos que permitem que ninguém fique de fora e a Universidade não veja comprometido o seu desenvolvimento? Através de uma nova redistribuição dos impostos, quiçá com um pendor mais social, ou através das taxas (quem frequenta paga, mesmo que parcialmente), considerando que a formação superior proporciona vantagens comparativas e maior probabilidade de obtenção de rendimentos futuros.

2º Formação em massa vs Formação da pessoa A formação multidisciplinar deve ou não incorporar a ética e os valores? Devemos ou não fazer uma recomposição dos saberes e uma formação mais humanizada, que beba em áreas de conhecimento dispares? Se sim, como é que se faz a formação da ética dentro da Universidade?

3º Graus académicos vs Licenças profissionais Cabe, ou não, unicamente à Universidade a atribuição dos graus académicos e ao restante ensino superior a concessão de licenças profissionais? Existe ou não conflitualidade de interesses no sistema binário de ensino superior?

4º Equilíbrio interno vs Equilíbrio externo Qual o equilíbrio interno que desejamos (ensino vs investigação) e qual o equilíbrio externo que queremos (universidade vs estado). Sem prejuízo do serviço publico, que regime de autonomia se pretende para a Universidade (regime atual vs regime fundacional)?

5º Investigação vs Autonomia Como financiar uma estrutura de investigação para criação de conhecimento? É possível desenvolver uma investigação de excelência financiada exclusivamente pelo estado ou maioritariamente por privados? Um desenvolvimento baseado na competitividade impulsionada pela inovação, pode mercantilizar a Universidade e proporcionar o abandono da investigação fundamental em favorecimento da investigação mais aplicada. Como pode a Universidade manter-se independente face ao estado, ao mercado e defender a investigação cultural?

6º Resultados vs Valorização das pessoas É justo que a Universidade utilize, em proveito próprio, os resultados da sua produção cientifica, tanto mais que só assim pode aumentar a sua produtividade. Tal gestão racional dos recursos deve ser feita igualizando os seus trabalhadores (técnicos, docentes e investigadores) às partes de uma máquina (rotineira, eficiente, confiável) ou, pelo contrário, deve recair sobre uma clara valorização dos trabalhadores, na perspetiva que são eles, com a sua vontade própria, que influenciam todo o desempenho da Universidade?

Nesta encruzilhada a Universidade deverá encontrar o seu futuro. Se conseguirmos encontrar o nosso equilíbrio, dentro da nossa missão, seremos competitivos, mais atrativos e os problemas da comunidade universitária serão atenuados, nomeadamente os que contribuem para deteriorar o reconhecimento e a recompensa dos que, diariamente, dão o seu melhor para honrar um legado secular, porque de facto, a ciência tem que ser humanismo e humanidade.

Diário As Beiras, 20161205

Um sistema educativo e uma Lei de Bases com o foco no aluno

Paulo Simões Lopes

“O Fórum de Políticas Sociais é um projeto para todos os portugueses que aborda áreas temáticas relevantes na sociedade portuguesa, com o objetivo de garantir o respeito pelo percurso de contratualização e cooperação entre economia pública, social e privada. A Décima Mesa Redonda do Fórum, com o tema, “Lei de Bases do Sistema Educativo”, ocorreu no passado dia 24, e eu disse sim ao meu exercício de cidadania na expetativa de contribuir para recentrar o foco desta Lei. […]”

artigo completo

O Fórum de Políticas Sociais é um projeto para todos os portugueses que aborda áreas temáticas relevantes na sociedade portuguesa, com o objetivo de garantir o respeito pelo percurso de contratualização e cooperação entre economia pública, social e privada.

A Décima Mesa Redonda do Fórum, com o tema, “Lei de Bases do Sistema Educativo”, ocorreu no passado dia 24, e eu disse sim ao meu exercício de cidadania na expetativa de contribuir para recentrar o foco desta Lei.

Em 1986, gastávamos na educação cerca de 800 milhões de euros, hoje gastamos 8 mil milhões. O esforço financeiro não foi em vão: Há 30 anos existiam 2 doutores por 100.000 habitantes, hoje existem 26. Nestas três décadas ocorreram muitas revoluções, para o caso destaco:

1- A revolução tecnológica, que está a mudar a maneira de aprender numa Lei de Bases que continua pré-internet;

2- A revolução da sala de aula, que passou a ser a soma das salas de aula e não um espaço fechado, hermético, centrado no quadro de ardósia e no (lente) dono do conhecimento;

3- A revolução da escola, que está a ultrapassar os muros e a absorver as dimensões educativas que existem na sociedade… Temos agora uma escola mais modesta, a começar a adaptar-se às necessidades locais, a precisar de politicas descentralizadas e de autonomia;

4- A revolução do professor. Antes ensinador, agora: Orientador; Tutor; Facilitador; e agregador de vários conhecimentos. Educa, educa-se e precisa de mecanismos que permitam a sua formação capaz e constante;

5- A revolução dos alunos. Como resume David Justino, os nossos miúdos já não pertencem ao “DOS”, eles são da geração “Windows”, são “multi-task” e nós não estamos a acompanhar a sua evolução nem sequer as suas capacidades.

Precisamos por isso de uma lei que responda a estes desafios, que procure consensos e que tenha um novo foco! Em 1870, havia no país 600.000 crianças em idade escolar não frequentavam a escola e em 1911, 75% da população continuava analfabeta. Entretanto a “mass schooling” transformou por completo a nossa sociedade: Hoje quase 50% da população entre os 25 e os 64 anos tem pelo menos o diploma do ensino secundário e a meta do horizonte 2020, é de 40% de diplomados pelo ensino superior para a população entre 30 aos 34 anos.

Impõe-se então averiguar como é que esta Lei regula a participação desta NOVA sociedade civil na modernização do pensamento educativo? Considerando que existe atualmente por cada 12 alunos/”encarregados de educação” um 1 docente, na ausência de outro indicador, fui à Lei procurar esta proporção e encontrei: 55 vezes a palavra docente ou professor; 29 vezes, aluno ou estudante; 1 vez, “Encarregado de educação”. Não fosse ter encontrado esta última referência e até podia ter confundido a pesquisa noutra Lei, por exemplo, no Estatuto da Carreira Docente.

Assim, por entender que a defesa do serviço público de educação se faz pelo serviço de qualidade que cada escola presta e não pela garantia da matricula dos alunos (muitas vezes contra a vontade das famílias), talvez valha a pena paramos um pouco e refletir, para percebermos se queremos continuar a construir nos próximos 30 anos um edifício em torno de quem quer ensinar ou se pretendemos recentrar a sua construção em torno de quem quer aprender.

Diário As Beiras, 20161110

Para a escola pública, não para privados?

Paulo Simões Lopes

“Os nossos impostos são para investir na escola pública, não para gastar com privados” A mensagem não passa despercebida ao transeunte. De dimensão generosa, as letras brancas, sobre fundo preto, ocupam todo o espaço do cartaz e pretendem despertar-nos para uma reflexão sobre o destino que poderíamos ou não dar aos nossos impostos. Na verdade, faz-me refletir sobre as escolhas que temos. Nem de propósito, em Fontismo, David Justino relembra Roland Émile Mousnier: “A história não tem sentido por si mesma, pois ela é moldada pela vontade dos homens e das escolhas que fazem”. Que efeito têm as nossas escolhas sobre os recursos disponíveis? Sendo os impostos escassos para o nosso nível de despesa (vida) e o acesso à dívida pública sempre um imposto no futuro, então as “escolhas” não deveriam ser tomadas de modo a não ficarmos prisioneiros das suas consequências? Se assim é, impõe-se um comentário sobre a boa ou má utilização dos nossos impostos, principalmente porque se percebe da mensagem uma preocupação meramente abstrata […]”

artigo completo

A mensagem não passa despercebida ao transeunte. De dimensão generosa, as letras brancas, sobre fundo preto, ocupam todo o espaço do cartaz e pretendem despertar-nos para uma reflexão sobre o destino que poderíamos ou não dar aos nossos impostos. Na verdade, faz-me refletir sobre as escolhas que temos. Nem de propósito, em Fontismo, David Justino relembra Roland Émile Mousnier: “A história não tem sentido por si mesma, pois ela é moldada pela vontade dos homens e das escolhas que fazem”. Que efeito têm as nossas escolhas sobre os recursos disponíveis? Sendo os impostos escassos para o nosso nível de despesa (vida) e o acesso à dívida pública sempre um imposto no futuro, então as “escolhas” não deveriam ser tomadas de modo a não ficarmos prisioneiros das suas consequências? Se assim é, impõe-se um comentário sobre a boa ou má utilização dos nossos impostos, principalmente porque se percebe da mensagem uma preocupação meramente abstrata.

Num orçamento para a educação pré-universitária que ronda os 6 mil milhões de euros, é legitimo perguntar sobre o foco em 2% deste orçamento. Mas não será certamente pelos 138 milhões de euros que o estado vai este ano pagar pelos contratos de associação, uma vez que com esse dinheiro conseguem-se obter resultados idênticos ou até melhores que nas restantes escolas da rede de ensino público. Não falo levemente: estes resultados têm sido estudados ao longo de vários anos, embora, nesta legislatura, se tenha decidido que não se deve avaliar as escolas pelos resultados das avaliações externas nacionais. Também não será pelo peso que estes 138 milhões representam dos nossos impostos, certamente. Porque se assim fosse, bastaria comparar este valor, meramente a exemplo, com a dívida acumulada por três Entidades Públicas Empresariais, nomeadamente, a dívida da CP, a da REFER e a do Metropolitano de Lisboa. Para quem quiser confirmar, veja-se a Conta Geral do Estado: são 15 mil milhões de euros de dívida, repito, quinze mil milhões de dívida. Mais coisa menos coisa, o equivalente a 108 (cento e oito) anos de financiamento, a preços constantes, de todas as escolas privadas que prestam serviço público de educação, ao abrigo dos contratos de associação.

Considerando as repercussões transversais que a educação, em conjunto com a CP, REFER e Metropolitano, “transportam” para o futuro prospetivo do país, pela lógica do cartaz, talvez seja interessante especular sobre a vantagem destes “transportes” para um contribuinte, por exemplo, transmontano, quando numa lógica de contributo para a redução das desigualdades sociais e regionais e para a equalização das oportunidades no acesso ao que é comum (saúde, educação, urbanismo, transportes, etc.).

Afaste-se por isso a discussão de quem vê o mundo a preto e branco, que não quer entender a diferença entre “escola pública” e “serviço público de educação”, que se refugia numa utilização dos impostos limitada a alimentar a máquina do estado e não a justiça distributiva, ou ainda que alimente a arcaica berraria que separa os que são pela obrigatoriedade da escola do estado dos que estão pela liberdade de escolha da escola para ensinar e aprender. Ao invés, porque não pedir para valorizar o mérito das soluções apresentadas pelas comunidades educativas que colocam as escolas, qualquer que seja a sua gestão, a oferecer um serviço público de qualidade? As evidências dizem-nos que a qualidade das escolas depende da sua autonomia, dos seus professores, da sua liderança e da adesão das famílias a projetos educativos onde os “horários das aulas batem certo com os do autocarro”, como na EB 123 do Curral das Freiras, na Madeira, onde 92% população escolar beneficia da Ação Social Escolar e, simultaneamente, das melhores avaliações externas nacionais. Por isso, se existem outras “escolas onde cabem todos os sonhos”, deixem que sejam as famílias a escolhê-las. Em geral, escolhem bem.

A verdadeira questão, em detrimento da vontade ideológica, deve ser a de pedir que se discuta o financiamento em função do desempenho da escola, que é, afinal de contas, o que desejamos para cada cêntimo dos nossos impostos. O retângulo do cartaz tem quatro lados, sem todos eles, não é o que pode ser!

Jornal Público, 20160411

Elogios à escola pública e filhos na escola privada

Paulo Simões Lopes

A coisa vem num livro publicado em Paris em 1964, Les Héritiers, les étudiants et la culture e o Vasco Pulido Valente chamou recentemente a atenção para a simplicidade da tese geral desta obra: ”a classe dominante tinha reproduzido a sua tirania transferindo o capital para a descendência; mas no mundo moderno passara a transferir o saber e não o capital. Ou seja, o seu método de reprodução mudara e o dever do verdadeiro socialista estava agora em destruir essa nova maquinação da burguesia […]”

artigo completo

A coisa vem num livro publicado em Paris em 1964, Les Héritiers, les étudiants et la culture e o Vasco Pulido Valente chamou recentemente a atenção para a simplicidade da tese geral desta obra: ”a classe dominante tinha reproduzido a sua tirania transferindo o capital para a descendência; mas no mundo moderno passara a transferir o saber e não o capital. Ou seja, o seu método de reprodução mudara e o dever do verdadeiro socialista estava agora em destruir essa nova maquinação da burguesia.” Assim, na impossibilidade de destruir numa geração os privilégios que a classe dominante herda da família, há então que destruir o carácter seletivo da escola simbolizada nos resultados dos seus projetos educativos: Acaba-se com os exames, privilegia-se o prazer em detrimento da educação e, num universo de aprendizagens discentes de quase completa ignorância, sem “capital intelectual”, os filhos da “classe social favorecida” seriam absorvidos pelo igualitarismo militante.

A insistirem nesta idiotia e a pretexto da “defesa da escola pública”, intentam há 42 anos contra as escolas do estado (veja-se por exemplo as 20 mudanças introduzidas nos últimos 16 anos no sistema de avaliação dos alunos). Depois de anos a fio a insistirem na defesa do edifício de quem quer ensinar e não no de quem quer aprender, fixam o olhar no ensino particular e cooperativo. Desta vez, a pretexto da escassez de recursos, em contrassenso, revoltam-se contra projetos educativos onde formar, mais e melhor, custa menos que nas escolas do estado. Entram por esta porta ferrugenta ignorando as teses bourdieusianas sobre as lógicas de distinção que leram em Les Héritiers: São os contratos de associação que permitem a uma “classe social desfavorecida” frequentar as escolas privadas nos mesmos moldes em que frequentariam a escola estatal, ou seja, de forma gratuita. Sem o ónus das propinas, são estes contratos que possibilitam a liberdade de escolha constitucionalmente preconizada. Acabar com estes contratos é acentuar a bipolarização do ensino entre ricos e pobres, é elitizar as escolas que não são do estado, legitimando-se assim o “capital” como acesso privilegiado a percursos escolares marcados pelo sucesso e pela distinção. Sim, porque neste alarido por 2% do orçamento do ministério da educação, qualquer pessoa com dois dedos de informação percebe que esta discussão pouco interessa a quem paga propinas de 20.000€/ano.

A menos que o objetivo seja esta bipolarização, a verdade é que o ensino contratualizado (do estado e de iniciativa privada) é parte da solução, e não parte do problema, no desafio honesto que aqui deixo: Criem, ou deixem criar, projetos educativos singulares e permitam que as famílias, ricas ou pobres, em igualdade de circunstâncias, escolham as escolas para os seus filhos. A partir desse dia, não haverá necessidade de apelar a lobbies de interesses políticos ou empresariais, nem de decretar o encerramento das escolas privadas ou estatais, porque as famílias, numa rede una onde coexistam várias ofertas, serão conduzidas pelo seu grau de satisfação e encarregar-se-ão de valorizar as escolas que são mais capazes.

Negar esta possibilidade é acentuar a bipolarização liderada por uma “classe dominante”, que tem ou teve os seus filhos a estudar em escolas privadas. Chamam-lhe gauche caviar na França, champagne socialist no Reino Unido, limousine liberal nos Estados Unidos, radical chic em Itália, esquerda caviar em Portugal. Fazem-no com a convicção de que um aluno, quando sai do ensino obrigatório, leva consigo pelo menos 4 legislaturas e que, neste espaço, “é preciso que alguma coisa mude, para que tudo fique na mesma”. Reafirmo esta convicção ao relembrar a filosofia de Dom Fabrizio Salina (em “O Leopardo”), que conduz a sua família através de tempos tempestuosos, mantendo o essencial da sua forma de vida.

Jornal Público, 20160224